“Afirmo: com certeza, autotortura
não faz nada bem, mesmo a psicológica. Ah! Como doí essa coisa que bate dentro
do peito. Uma filha de Sam não deveria sentir, mas...”
Mesmo diante desta simples
conclusão e sendo tida como nervosinha preferiu optar por uma profissão, um
estilo de vida e uma forma de diversão que prejudicava ainda mais a análise de
sua personalidade. Em função disso, não era apenas impaciente. Passou a ser
intransigente, opiniática, cheia de manias com as quais outros não podiam
conviver.
Sua formação ocorreu naquela década
passada ao largo e que agora querem recuperar: a de 80, a mais pop e a mais
absolutista que poderia ter existido, seja neste país, seja em qualquer outro.
Tornou-se letrada, aparentemente inteligente, envolvida em várias vicissitudes
da vida moderna, sem se envolver realmente com nada.
Aparentava sentir, mas será? Sempre
se percebera como a mais evidente filha de Sam, muito embora os outros não
notassem. Havia um quê de psicótico em suas ações e reações, ela sabia. E se
questionava como ninguém notava.
Sofrera ‘bullyng’, o que na sua
época já existia em sua cidade, escola e até mesmo entre familiares, assim como
no resto do mundo, embora as pessoas não dessem esse nome estrambólico ás
perseguições que ocorriam nas instituições mencionadas. Além disso, dentro do
colégio ninguém se importava com o que os estudantes faziam uns com ou outros.
Então, tudo era entendido como um
fato comum entre aqueles das mesmas faixas etárias. “Brigas de crianças”;
“birra apenas”; “criancices”; apesar das injustiças que ocorriam, dos maus
tratos, dos sentimentos feridos e das escoriações que apareciam.
“Não foi nada, mãe. Caí no pátio
durante o recreio”.
“Esbarrei num colega na educação
física”.
“Bati a cara na cercada horta
quando estava de correria”.
“Vê se toma cuidado, guria. Sempre
desajeitada”, repreendia a mãe.
“Tu mais parece um guri que uma
menina”, dizia o pai, meio grogue.
E mesmo com a vontade de baixar o
sarrafo em todo o mundo, nada fazia. Remoía sozinhas as escoriações e
sentimentos feridos. Nunca havia explodido uma bomba na escola, nunca
metralhara nenhum colega, nunca socara a cara de ninguém menor do que ela. Mas
sabia que, por dentro, num lugar que ninguém vê nem sente, a semente se
contraía. Só não entendia porque esta não vingava.
É bem verdade que escrevera um
diário codificado, com alguns desenhos um tanto estranhos, mas quando as
ruminações chegaram naquele quarto escuro resolveu que aquilo não adiantaria
nada. Aliás, era até perigoso. Então, deixou de escrever e começou a viver de
sonhos e pesadelos.
O diário foi escondido por dois
anos, o que poderia ter algum significado esquisito para ela. Ou não.
Quando o leu pela segunda vez
percebeu que tudo ali era muito suspeito e destruiu o caderno, sentindo um
prazer meio mórbido em ver as chamas devorando as palavras uma a uma, como um
canibal degustaria suas vítimas, enquanto seus olhos traduziam inversamente os
códigos, que, mesmo assim, acabavam dizendo a mesma coisa e nada.
“Uma filha de Sam deveria ser mais
ativa”, pensou nessa ocasião solene. Entretanto, nunca ultrapassou o limite da
divagação. Continuava a olhar furtivamente ao redor, planejando de forma
incansável a vingança, sem nunca pô-la em prática. E seus colegas se iam rindo
por terem acabado com seu corpo e mente. Mas quando se voltavam ela estava
olhando e, sem saberem o porquê, acabavam acelerando o passo. Aqueles olhos
infinitamente mansos arrepiavam suas nucas.
Até que ela descobriu um membro
muito pequeno, mas eficaz. Ah! Se tivesse percebido antes tudo teria sido
diferente, talvez menos duro, embora intragável. Sua língua passou a ser o
detonador de muito desconforto para aqueles que a incomodavam. E por isso
passou a vagar pela escola sozinha, a viver na biblioteca, a falar com
professores sem ter que se preocupar com as represálias e apelidos de puxa
saco.
E assim ela foi vivendo a década da
desgraça juvenil, que trouxe outra onde a cultura se esvaiu pelo ralo, até
chegar a que corre hoje, em que muitos alegam que se está vivendo uma grave
crise social e se reconheceu a ‘existência’ do tal ‘bullyng’.
Parece que somente quando algo
chama atenção ou é nomificado em outro país é que se começa a ver que o
problema também ocorre aqui ou acolá. É como moda ‘retrô’: vai e volta e as
pessoas sempre dizem que estão criando ou descobrindo algo novo, sem, contudo,
realmente estarem fazendo isso.
A década de 80 se resume a este
‘x’. E a atual só aprendeu a copiar aquela, com grande prejuízo para a arte de se
saber o que deve ser feito.
Assim, o terrorismo emocional e
escolar virou rotina. A moda agora é homem chamar mulher de cachorra, mulher
aceitar e pedir para ser tratada como cachorra, o que, no final não se sabe o
que significa, porque as cadelas até são bem tratadas pelos seus companheiros,
e deificar pessoas que matam tudo em busca de dinheiro, prazer, adrenalina,
mais prazer, mais adrenalina, mais dinheiro, até tudo virar rotina e ninguém
sentir mais nada.
Ela meditava nessas circunvoluções
algumas vezes. Mas ela era uma filha de Sam e sabia que isto ocorreria com pelo
menos vinte anos de antecedência e não se preocupava muito com o resultado. Os
decadentes assintomáticos sempre preveem a decadência antes mesmo de ser
prenunciada.
Assim, seu pai morreu
miseravelmente, mas seu legado virou a melhor herança que ele poderia deixar.
Nem ele percebeu isso antes de sua fatídica e esperada morte.
Contudo, a psicose de sua filha
continuaria parcamente dominada. Ela era de uma espécie diferente de filha de
Sam, uma espécie transitória, que na ocasião que surgiu não sabia bem o que
queria, desejava ser ou fazer. A influência paterna foi forte, mas, como pode
ocorrer na primeira geração, não a ponto de desencadear o surto fatal para si
ou para outros.
Diz o determinismo, tese que ela
achava uma grande bobagem, mesmo sendo uma das teorias em evolução constante,
sem nunca constatar nada, e de ser amplamente divulgada pelo país de origem de
seu pai, que o gene ruim, embora presente, pula uma geração, e acomete
fortemente a segunda e terceira, agravando-se com o passar dos séculos ou
sofrendo uma recidiva. Afinal, a doutrina do mais forte ainda servia para
justificar muita mentira tosca, vendida a preço de banana, e aceita pela maior
parte da população letrada ou não para desculpar suas atitudes esquizoides.
Entretanto, ela sabia que esse
cientificismo todo não era verdadeiro. Sabia que, se uma semente era ruim, os
brotos todos seriam contaminados.
Como ela já confirmara, o fato era
que os rebentos mais antigos apenas pareciam conter mais facilmente sua
malignidade. Haviam decidido, de sã consciência, deixar que seus descendentes,
com a mais exaltada alegria, mostrassem perante os expectadores, mais ou menos
inocentes, a pior parte.
Wow!!!!!
ResponderExcluirQue texto!!!
Muito bom, amiga!!!
Me enxerguei em alguns trechos deste texto!!!
Parabéns e obrigado por compartilhar!!!