domingo, 24 de novembro de 2013

JOANA

Hoje vou falar de Joana.
Joana terminou o ensino fundamental e o ensino médio. Trabalhou por um tempo como vendedora numa loja de sapatos. Por mais que ela amasse essas maravilhas, que enfeitam os pés femininos, e comprasse um par por mês, ela não era boa para efetuar vendas.
Foi demitida três meses depois.
Mas Joana precisava trabalhar, então, foi contratada como caixa operadora num supermercado, primeiramente através de um contrato de experiência. Depois, como conseguia ser mais eficiente nesta função do que na primeira, foi contratada definitivamente. Além do que, ela era bonitinha, disse alguém da supervisão.
Esse era um trabalho estafante, mais que escravo. Mas ela aguentou as pontas e as reclamações, muitas vezes infundadas, de clientes e supervisores, principalmente de um deles, chamado Antônio, que vivia pegando do pé dela, apesar deste ser aquele que disse que ela era engraçadinha.
Antônio reclamava de Joana acintosamente, não porque ela fosse demorada no atendimento dos clientes, chegasse atrasada, ou tentasse sair mais cedo.
Joana era realmente trabalhadeira.
O supervisor a incomodava porque Joana não queria sair com ele para jantar e, muito menos, para uma esticada até o apartamento sala-cozinha de Antônio.
Ele tinha raiva dela porque ela o rejeitava.
Joana tinha nojo dele porque ele gostava de se aproveitar das funcionárias, ao menos de algumas, porque sempre havia aquelas que topavam qualquer coisa, inclusive sair com um cara esquisito como o Antônio.
Mas Joana precisava do trabalho. Então, aturava o carrasco do supervisor, procurando impor respeito. Afinal, ela ainda deixaria aquele trabalho sem remuneração digna, por mais de 8 horas diárias, sem direito a um intervalo decente para almoçar ou para ir ao banheiro.
Então, neste ano de 2013, Joana resolveu tentar o ENEM para uma profissão comum, mas importante. Queria ser professora. Era seu sonho de menina da periferia. As colegas de trabalho riam dela e tentavam fazer Joana aceitar as investidas do Antônio. 
Afinal, porque se matar estudando, se um cara qualquer podia sustentá-la?
Mas ela preferia não viver assim. Joana queria uma vida decente, com uma profissão decente, que fosse importante para ela e para outros, mesmo que a maioria da população não reconhecesse isso. Além disso, o asco pelo supervisor era muito grande, porque ele parecia um maluco enrustido. Contudo, ninguém acreditava em Joana.
Ela passou no Enem, com muita dificuldade, mas passou. Foi para o serviço feliz e contou para as colegas, que deram os parabéns com inveja e deboche entrelaçados como serpentes nos ninhos.
Antônio ouviu e ficou irado. Mas guardou seu rancor para si. Durante o expediente ele convidou Joana mais uma vez para sair. Ela rejeitou o convite e ainda mandou o supervisor pastar.
Joana já estava cansada daquele assédio para o qual os demais superiores do supermercado faziam vistas grossas e não se importavam em por um fim. Antônio ameaçou demiti-la. Ela disse que já não se importava, que já tinha coisa melhor em vista.
Antônio se afastou da caixa operadora cheio de uma violência que deixava seus olhos vermelhos. Não falou mais com a guria durante o expediente.
No final do dia Joana já estava preparada para a demissão, mas não foi chamada no escritório para tratar do assunto. Saiu do supermercado meio aliviada, afinal ainda precisava do trabalho.
Quando chegou na esquina, onde a luz do poste estava queimada, sentiu seu braço ser puxado e encarou um par de olhos vermelhos de ódio. 
Era Antônio.
Ele a puxou para um terreno baldio e fez o que bem entendeu com o corpo da Joana. Depois a matou. Estrangulada. Ficou chorando ao lado do corpo até que a polícia chegou e o levou para a Delegacia.
As colegas de trabalho foram chamadas para responder perguntas desnecessárias, afinal as provas demonstravam claramente o que tinha ocorrido.
Mas as colegas, seja por inveja, seja por desprezo, disseram que Joana era uma devassa, que vivia provocando o coitado do Antônio, que era casado e fiel a esposa, até que ele não aguentou e fez a barbaridade que fez, mas, coitado, tinha sido atormentado por mais de um ano, até enlouquecer.
A polícia, certamente, indiciou Antônio, que era primário, tinha emprego, família e moradia. Foi sentenciado a pena de prisão em regime fechado, mas em seguida progrediu de regime e passou para o semiaberto. Voltou a trabalhar no mesmo supermercado onde continua atormentado uma ou outra funcionária mais medrosa.
Joana foi enterrada num caixão dos mais baratos. Não tinha pai e a mãe acreditou que a história que as colegas de trabalho contaram na Delegacia sobre sua filha era verdade.
“Afinal, quem mandou uma guria de família ir morar sozinha? Quem mandou ela não se casar e ainda querer fazer faculdade? Só podia acabar assim mesmo”.
É que a progenitora de Joana costuma comentar com as vizinhas, na vila em que mora há mais de 30 anos e onde sua filha cresceu.

domingo, 17 de novembro de 2013

TEORIA DA TRÍADE ZUMBI


1.É preciso estar vivo e ser infectado por um vírus desconhecido, ou, ao menos, se conhecido, sofreu uma modificação tão grande que dificulte sua identificação.

2.É preciso morrer por causa do vírus, ou outros motivos, e voltar a viver quase sem nenhuma função cerebral.

3.É preciso morder outro ser humano, que vai ser infectado, morrer por causa do vírus ou outro motivo, e voltar a viver, para infectar outros, e assim sucessivamente.

Conclusão:

1. Frankenstein, embora sendo um morto-vivo, nunca foi, não é e nunca será um zumbi.

2.Nem todo canibal que anda por aí é um zumbi.

3.Nem todo ser humano se torna um zumbi.

Why? 

I don't know!

Mas, com certeza, um zumbi pode ser regenetizado.

Como? 

Aguardem.

sábado, 16 de novembro de 2013

POESIA ZUMBI II

Vou vagando sem destino
O sangue coagulado nas veias
um coração que não bate
O cérebro perdeu as estribeiras
Não restam memórias para sorrir
o dia não passa para meu corpo vazio

Congelando no tempo
a alma a se corromper
a dor de ter sentimentos
já não existe
e não há piedade
em quem parece um lobo mais que selvagem
devorando outros sem comoção

A consciência já quase não existia antes
e a perdida civilização levou o resto
Por isso não há arrependimento
para quem morreu e devora o próximo
como único meio de salvação.

Se antes as emoções estavam quase apagadas
agora estão mortas porque o mundo
apagou a humanidade que antes eu tinha
Agora é só devastação

Agora é quando os zumbis criados 
andam pelo mundo
esquecendo quem eram
e apenas devorando o que encontram
seja animal ou pessoa
Sem qualquer compaixão.



domingo, 10 de novembro de 2013

A TIA

O dia estava muito bonito. As pessoas caminhavam tranquilamente na pacata cidade no domingo ensolarado. Ela curtia o sol, sorrindo feliz pelo fato de poder desfrutar uma folga, enquanto fazia jogging às 7h da manhã num dia de verão tórrido.
Mas aí o celular resolveu criar vida. “Droga, porque eu tinha que trazer esse negócio comigo”, pensou contrariada.
No entanto, atendeu. Era seu dever, fazer o que.
-Alô? Sei, mas hoje é minha folga. Sim... entendo. Realmente é muito triste. Chegarei as 8h30, está bom? Estou um pouco distante de casa. Ok. Até breve.
Ficou contrariada, mas a situação que interrompeu seu domingo sorridente era totalmente imprevisível, por isso ela decidiu perdoar os patrões.
“Creio que fariam o mesmo por mim, se eu estivesse na mesma situação”, raciocinou para se consolar, embora não acreditasse muito da bondade do casal que a contratara. Mas, enfim, nem sempre as aparências correspondem à verdade sobre as coisas, os fatos e as pessoas.
Chegou em casa, tomou um banho rápido, trocou sua roupa pelo uniforme e saiu em disparada pelas ruas de Rio Grande, com sua Biz. Chegou pontualmente na casa em que trabalhava. O casal já a esperava na sala com a porta aberta. Tinham uma expressão de lástima e dor estampada na cara, vestiam roupas num tom sóbrio de cinza.
-Bem, ela ainda está dormindo. Sentimos por interromper teu descanso...
-Tudo bem. – Ela disse. – Nessa situação dessas eu não deixaria vocês na mão. Podem ir, e sinto muito.
Eles balançaram a cabeça em assentimento. Um olhar de gratidão refletiu nos olhos da patroa, enquanto ela derramava algumas lágrimas. Saíram, entraram no sedan preto. O patrão deu a partida e o carro deslizou rua abaixo, em direção a um lugar que ninguém gostaria de visitar.
Ela suspirou, fechou a porta e se dirigiu para o andar de cima. Bateu de leve na porta do quarto e entrou. Observou um monte debaixo do cobertor, encolhidinho. Como era estranho: as pessoas vão encolhendo a medida que envelhecem. Parece que o corpo voltava, gradualmente, a infância, só que agora todo enrugado.
Aproximou-se da cama e sentiu um leve ressonar. Os cabelos branquinhos que apareciam ali lhe despertavam certa ternura, pelo menos enquanto sua dona dormia. Quando estava acordada, a velha, às vezes, podia ficar bastante irritante ou tornar-se furiosa.
Ela estava entrando nos estágios finais do Mal de Alzheimer, com todas as mazelas que essa doença traz. No entanto, ainda tinha alguns momentos de lucidez. Nessas ocasiões era possível ver a pessoa que ela fora um dia: de personalidade forte, mas gentil.
Ela checou alguns medicamentos e horários de administração. Estava tudo sob controle. Os patrões também já tinham dado o café da manhã para a senhora acamada. De fato, apesar de suas desconfianças, o casal ajudava a cuidar bem da sua paciente.
Então, a velhinha acordou. Ela percebeu pela mudança do ritmo da respiração. Ficou preparada para um dos surtos matinais da enferma, ainda de costas, estudando as informações sobre a cômoda. Respirou fundo e se virou.
Ela encarou os olhos da senhora, mas, ao contrário, eles estavam tranquilos, plácidos, quase sãos. “Acho que vamos ter uma manhã boa, hoje”, ela pensou um tanto contente.
-Bom dia, tia! – exclamou sorridente e em tom carinhoso, mas profissional. – A senhora dormiu bem? Como estamos hoje?
-Dormi bem, sim, minha filha. – a tia respondeu com uma voz nem fraca nem forte, uma voz que todos os idosos têm, no entanto, hoje levemente chiada, barulho que vinha do seu peito, mais precisamente, e afetava as cordas vocais da velhinha, estranhamente recuperada nessa manhã de tristeza para sua família. – Só tive um sonho meio esquisito. Sonhei que minha irmã havia falecido, depois de pegar uma febre terçã. Dizem que isso é sonho ruim. Mas eu não acredito nessas bobagens, não, viu? Não precisa ficar com medo. Mas me lembra de telefonar pra ela mais tarde. Deve ser saudade esse aperto no peito.
“Coitada, quando souber, não quero nem ver. Se bem que ela pode esquecer do telefone a qualquer momento. Amanhã, ela nem vai lembrar do sonho”.
-Pode deixar tia, eu lembro a senhora sim. Quer sentar em sua cadeira agora e ir lá pra baixo comigo? Podemos ouvir música como da última vez ou ver televisão. Melhor! Ver um daqueles filmes antigos que a senhora gosta.
-Ah! Eu gostaria sim, minha filha. Vamos ver filmes. – e a velhinha riu, seu risinho de velhinha que parece que vai praticar um grande delito.
-Então vamos lá. – Ela disse, ajudando sua paciente a trocar de pijama, depois puxando a cadeira de rodas para perto da cama. Segurou a velhinha por baixo dos braços e levantou-a.
“Estranho. Ela está um pouco quente”. – pensou.
-Tia, a senhora está se sentindo bem?
-Sim, minha filha, somente com um pouquinho de frio. Podemos levar meu cobertor vermelho lá para baixo? Acho que vai chover, sempre sinto frio quando vai cair chuva.
-Sim, tia, levamos sim. – ela colocou o cobertor sobre as pernas da velhinha e pegou o termômetro para medir a temperatura da enferma no andar debaixo, quando ela já estivesse acomodada diante da televisão.
Após os preparativos e quando o filme já estava rodando no blue-ray, ela disse para a tia:
-Vou colocar o termômetro para ver sua temperatura, a senhora está um pouquinho febril. Não tira do lugar, ok?
-Ok, minha filha. – disse a velhinha sorrindo para a tv e para a acompanhante.
“Ela está bem lúcida hoje”, pensou a jovem contente.
-Hum, eu gosto muito desse filme. – A tia disse. – Filme de terror muito bem feito. Boris Karloff era um dos meus atores preferidos.
Ela sorriu da lembrança da tia. “Que doença estranha, faz a gente lembrar de coisas sem importância e esquecer o que importa. Isso é tão triste. Maldição por não terem encontrado a cura ainda”.
Ela preparou uma xícara de café e sentou no sofá, ao lado da cadeira da velhinha, que olhava com olhos arregalados a televisão, com o mesmo medo do filme, como quando ela o viu pela primeira vez.
A acompanhante notou a doente coçando calmamente o braço. Estranhou o gesto, porque a tia não tinha o hábito de se arranhar. Ela pegou o termômetro antes de verificar o machucado que estava incomodando a velhinha.
Temperatura: 38,5°.
“A tia está com febre. Melhor eu dar o remédio antes que piore”. Ela buscou o comprimido e disse:
-Tia, toma esse remedinho aqui. A senhora está com um pouquinho de febre e não queremos que isso piore, né?
-Não, não queremos, minha filha, isso deixaria meus sobrinhos muito preocupados. Eu não quero incomodá-los hoje. Eles precisam descansar também. – a tia disse totalmente lúcida. – Sim, acho que tenho um pouco de febre mesmo, está tão frio. Tem mais um cobertor? Ah! Essa é a parte que mais gosto do filme. – disse apontando para a tela onde se via uma criatura se arrastar pela sala de uma casa, pegando uma pessoa pelo pescoço e...
Ela percebeu que a senhora coçava com mais força o braço. Resolveu verificar o que era.
Quando arregaçou a manga do pijama ela notou horrorizada a marca de dentes no antebraço branquinho da senhora. Ao redor da mordida via-se um tom avermelhado como se fosse gangrena e pequenas veias, que iam estourando aqui e ali, se espalhando pela região como um mapa macabro.
-Tia, quem fez isso com a senhora? – ela perguntou, com medo de descobrir que, na realidade, aquele casal que a contratara e parecia se importar com sua paciente, eram dois sádicos que gostavam de torturar seres indefesos.
A velhinha olhou para o local que ela apontava e disse:
-Não sei, minha filha, apenas acordei hoje e vi isso aí. Será que um rato me roeu durante a noite?
-Não, isso é uma mordida de gente. Foi a senhora que fez?
-Não, não. Apenas apareceu aí, não sei como. – a tia respondeu calmamente. – Mas não se preocupe querida, logo a ferida se cura, sempre fui muito rápida em me curar.
-Ok. – ela disse para não alarmar a velhinha. – Vamos fazer um curativo pra senhora não ficar coçando o machucado, senão vai piorar. A febre deve ser disso.
Ela buscou os apetrechos e fez uma limpeza no local. Quanto mais ela limpava, mas porcaria saia. Ela começou a ficar preocupada, e com nojo, mas resolveu passar uma medicação e cobrir o local temporariamente, até ver se a febre baixava.
“Se não melhorar, eu levo ela ao hospital. Acho que vou ter que conversar seriamente com os doutores”.
O tempo transcorria lentamente e o filme parecia nunca acabar. Ela quase adormeceu no sofá. Lá pelas 11h da manhã ela olhou a velhinha, que havia parado de coçar o braço e ria até não poder mais com o filme, que já estava sendo reprisado automaticamente pelo aparelho. Ela olhou para a tv, havia sangue e alguns corpos mutilados pelo cenário.
Ela olhou para sua paciente. Notou que a tia estava enrolada em três cobertores.
“Eu não lembro de ter dado três cobertores para ela”, a acompanhante raciocinou assustada. “Ou dei e não me lembro? Afinal, acho que dei uma cochilada aqui. Também, era dia de folga e não tive tempo de dormir para me recuperar”.
Ela tocou a face da tia e sentiu que estava pegando fogo. “Meu Deus a febre aumentou”. Mediu a temperatura dela outra vez: 40°.
-Tia, a senhora está bem? A sua febre aumentou muito.
-Estou menina, não me incomode. – disse a velha um pouco mais agressiva do que o normal. – Hum, tu é bem branquinha, como aquela atriz ali do filme. E tão apetitosa...- a tia riu um riso gutural, olhando para ela como se fosse um pedaço de carne.
-A senhora não está bem, não, vou chamar seu médico. – A acompanhante disse rumando para o telefone.
-Não precisa fazer isso, não menina.– a velhinha berrou.
 Quando já estava alcançando o aparelho, ela ouviu um rangido. Parou e olhou para trás. Ficou aterrorizada.
-Já estou bem, já estou bem, menina. Não vê? – disse a tia em pé dirigindo-se devagar em sua direção.
-Minha filha, acho que lembrei quem me mordeu. – disse a velha assustada. - Foi minha irmã, durante o sonho. Ela esteve aqui e me mordeu. Doeu muito. Ela foi muito má, muito mááááááááá.
Ela prolongou a última sílaba, ficando com a boca aberta. Do orifício negro começou a escorrer uma baba esverdeada. A tia estacou repentinamente.
Ela viu a velha revirar os olhos, fechar e abrir a boca, deixando escapar um oooohhhh, misto de dor e rugido. A tia caiu no chão. Seu corpo começou a tremer incontrolavelmente.
“Convulsões!”, ela pensou enquanto corria até o corpo caído para sentir a pulsação, que estava bastante fraca. Os tremores pararam. A tia olhou para ela, como a implorar ajuda.
A respiração da velha parou totalmente.
Assim como seu coração.
E a temperatura do corpo começou a baixar a velocidade da luz.
A acompanhante levantou e foi até o telefone. Digitou um número e disse:
-Por favor, preciso com urgência de uma ambulância, minha paciente teve uma convulsão. Rápido, acho que ela está tendo uma parada cardíaca também.
Enquanto ela dizia o endereço para a atendente do serviço de emergência, sentiu, mais que ouviu, um barulho arrastado a suas costas.
A atendente, do outro lado da linha, repetia o endereço informado lentamente, lentamente.
-Sim é esse mesmo, por favor...
Então a acompanhante foi puxada e empurrada contra o armário por um braço com uma força sobre-humana. Ela só teve tempo de ver uns olhos cheios de sangue, sentir o fedor que vinha daquela boca esverdeadamente podre e a dor quando os dentes da tia se cravaram em seu rosto, arrancando um naco da sua carne branca e apetitosa.
Do outro lado do telefone, a atendente ouviu um grito pavoroso, depois o barulho do telefone batendo contra algum móvel, enquanto ela repetia:
-Alô? Alô? O que está acontecendo aí? Alô, alô?
Lá fora, o sol tórrido de verão continuava a brilhar.
O céu mantinha seu azul feliz sobre os habitantes da cidade gris. 
Enquanto isso, a tia saia para caçar na rua tranquila em que morava.

sábado, 2 de novembro de 2013

NOVIDADE!

É com grande alegria que informo aos leitores e seguidores do blog que estarei participando mensalmente, todo dia 03, da Revista SAMIZDAT.

Convido os amigos e leitores a prestigiarem não apenas o meu trabalho, mas também o trabalho dos demais escritores que compõem essa excelente revista literária.

Fica aqui o link para quem quiser curtir e seguir.

sábado, 26 de outubro de 2013

O ESPELHO*

A vida é assustadoramente estranha. Muitas vezes, ela nos traz boas surpresas. Mas, em alguns casos, mais comuns do que pode parecer, a vida bate à nossa porta e nos mostra a face horripilante daquelas coisas que não ousamos imaginar.

E foi assim que surgiu, no portão da casa em que eu morava, nas proximidades da Br 392, aquilo que eu mais temia, principalmente por causa das histórias que meus parentes me contavam sobre o antigo casario que eu herdei de meus pais.

Uma sombra projetou-se sobre mim e jogou-me para o interior da residência. Eu caí sobre o piso de madeira do hall de entrada. Petrificada ante a escuridão que tomou conta do recinto eu não ousei olhar para cima e encarar a face do ser escabroso, com bafo repleto de ignomínia, que me mantinha pregada ao chão.

Era uma sombra e, no entanto, pesava tanto sobre mim que não permitia que eu me mexesse. Comprimia meu corpo contra o assoalho fortemente, me deixando desatinada de medo e expectativa.

Eu tremia; eu deixei lágrimas de pavor escorrerem dos meus olhos, deslizarem pelo meu rosto coberto pela escuridão densa produzida por aquela coisa e pelo cheiro nauseabundo que emanava da sua boca que, eu pressentia, não tinha fim, nem começo. 

Por isso, por covardia, eu preferi ficar mirando o espelho que recobria uma parte da parede do hall, indo do teto ao chão, mas que, tomado pelo negrume da sombra, nada conseguia refletir.

Então senti uma língua percorrer demoradamente minha cara, como a querer saber que gosto eu tinha, se eu era ou não o petisco que iria saciar sua fome. Mesmo diante disto, eu não gritei. Senti a saliva daquilo grudando na minha pele. Talvez nunca mais iria sair dela, mesmo que eu a lavasse repetidas vezes.

A escuridão arfou, fungou, grunhiu e me provou mais uma vez. Eu senti sua boca imensa abrir e fechar, abrir mais uma vez e, quando acreditei que ela me devoraria finalmente, a coisa simplesmente sumiu.

Foi embora, permitindo que o sol brilhasse dentro da minha casa outra uma vez, e livrando meu corpo do peso que me subjugava, embora eu tivesse a sensação de que nada o havia prendido durante aqueles breves, mas terrivelmente eternos, momentos. 

A sombra sumiu na claridade do dia, levando consigo sua boca profunda e fedorenta.

Apenas o espelho restou como testemunha do transe que sofri, pois nele ficou gravada a forma esfumaçada daquele ser que não consegui identificar, embora sua lembrança, até hoje, arrepie os pelos da minha nuca. 

Contudo, apesar do terror que essa imagem me causa, eu não consigo me livrar do espelho, dessa estranha prova do que vivi naquele dia.

É por isso que eu, desde então, costumo dizer a quem me pergunta sobre o espelho:

"Não desce as escadas se não tiveres coragem para encarar o que irás encontrar no subterrâneo".

*Publicado na Antologia "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo", Edição 2012, CBJE. O conto sofreu algumas alterações em relação ao manuscrito original.


domingo, 20 de outubro de 2013

A CAIXA

Não. Não. Nããão. Eu sei onde estou mas está tudo escuro. Sinto os lados a minha volta. Não de novo não.
Achei a luz fraca que sempre está aqui quando ele me coloca para dentro isso não consola nada dá mais medo ainda.
Não. Dessa vez a culpa não foi minha. Por favor por favor me tira daqui estou implorando me deixa sair mas eu sei que tu não vai deixar eu murmuro para ele não ouvir porque pode ser que dessa vez dessa única vez ele tenha um pouco de compaixão.
Então escuto seu risinho infernal num dos cantos escuros enquanto percebo que dessa vez ele me amarrou.
Acho que vou ficar um bom tempo aqui e estou apavorada com isso. Por favor nããããããooooooo.
Eu aprecio muito vê-la presa nessa quase imponderável escuridão. É tão excitante ver suas tentativas de sair e seus pedidos de misericórdia. Como ela é patética.
Por isso eu rio, esse rizinho fino que ela ouve vindo desse canto onde estou e faz com que ela sinta mais pavor ainda.
Não meu amorzinho tu não vai sair dai por um bom tempo. Tu foi uma menina muito má muito má Tua maldade me deixa bastante feliz e é por isso que tu vai ficar aí para que eu possa rever tudo o que tu fez e me deliciar totalmente.
Não dessa não vou deixar tu sair. Estou rindo meu risinho de novo Tu pode me ouvir? Ele não te deixa feliz? Olha só só mais um risinho para te apavorar porque no fundo eu sei que tu gosta dele. É por isso que tu sempre faz alguma maldadezinha porque eu sei que tu quer voltar.
Ele a prendeu de novo e isso acaba comigo não foi nada grave e ele só quer torturá-la.
Como que eu vou tirar ela de lá dessa vez? Ele está totalmente descontrolado e hoje sinto minha coragem para enfrentar aquela criatura vacilar.
Está meio escuro aqui. Mais apertado que o habitual e não vejo nenhuma movimentação dela para livrar a menina daquele maníaco.
Eu estou cansada eu queria gritar mas não tenho condições e também não quero enraivecê-lo. É difícil evitar que a situação piore quando ele perde o controle.
Vou ficar no meu quadradinho dessa vez A menina que me desculpe...
Mas no fundo eu não posso acreditar não posso aceitar o que ela está fazendo. E os outros porque não fazem nada também? Porque sempre eu tenho que resolver tudo?
Mas que droga será que ela só sabe sorrir e falar manso e dizer que está tudo ok? De que material é feita essa criatura? Será que não tem sangue?
Por causa dela o maluco está alucinado de novo e torturando a menina enquanto aquela outra só pensa em dormir.
Pra variar sou eu que terei que resolver tudo. E vai ser agora opa tem algo errado não consigo sair daqui.
Mas que porcaria está acontecendo? Droga meu pé tá acorrentado meu pé está acorrentado! Será que ela deixou aquele devasso me pegar? Logo a mim que sempre coloco tudo em ordem?
Ei cara me solta, me solta senão dessa vez tu não escapa se eu te pegar não vai sobrar nada de ti pra contar a história!
Ele está rindo! Desgraçado rindo de que? De mim? Perdeu a noção de medo seu idiota. Acho bom tu me soltar agora mesmo!
Dessa vez eu não tenho culpa. Ele sussurra enquanto ri de mim e das outras duas. E ainda resolveu conversar com a moça que fica com a chave.
Mas a moça da chave não está nem aí para o que está acontecendo aqui dentro. Ela está mais preocupada em ajudar a manda chuva a fazer sala para os imbecis que a veem todo dia todo santo dia onde ela faz sempre as mesmas coisas sem se importar conosco que temos que lidar com o maníaco de risinho fácil.
Idiota! Idiota! Como tu foi te deixar prender assim!?
Ela está furiosa hoje, aliás sempre, mas hoje está pior porque ela descobriu o que a manda chuva fez e acha que eu tenho a culpa por causa do que o lunático disse aquele pervertido.
Mas eu não tenho nada a ver com isso, eu só fico com a chave é só isso que eu faço eu só cumpro ordens. Nada mais.
Mal sabe ela que eu também não tenho escolha. Faz tempo que venho raciocinando com a chefe pedindo implorando por eles por mim mas não adianta ela decidiu isso e pronto nós que fiquemos aqui a nos tolerar e vigiar.
Eu não suporto mais esse cubículo onde fico 24 horas de vigia não sei quando poderei tirar uma folga novamente ela disse que dessa vez não vai admitir erros.
Estou apavorada.
Ah tais aí? Por favor me deixa ir embora ou ao menos dormir um pouco. Apaga esse sol ou fecha esse olho que fica pairando sobre minha cabeça.
Eu só peço isso. Não, não fecha a cortina, fica escuro demais. Eles podem conseguir sair e aí o que eu faço?
Espera não vai embora não tranca a porta eu não vou poder respirar se tu fizer isso. Não não Por favor volta aqui não precisa fazer isso eu vou parar de reclamar não fecha a porta não fecha...
A dor de cabeça voltou já tomei o remédio mas não está adiantando. E eles só fazem gritar. Que droga eles sabem o quanto isso me irrita e só é pior para eles mas não adianta eles continuam fazendo estardalhaço.
E ela não faz nada para acalmá-los eu não sei porque eu pedi para que ela tomasse conta da situação novamente.
E essa luz que vem por trás do meu olho não ajuda nada. A dor tem piorado muito mas é por causa dos gritos deles constantemente implorando debochando chorando ou rindo e aquele cara louco pra variar sempre atormentando uma delas, principalmente a menininha.
Calem a boca pelo amor de Deus!
Não adianta se eu grito é pior.
Droga vou ter que tomar o remédio outra vez. Ele disse que eu deveria tomar uma dose 3 compridos e deitar quando sentisse muita dor mas isso já não está funcionando faz uns quatro dias.
Ele mentiu de novo ele sempre faz isso diz que agora a dose vai ser a certa no entanto nunca é.
A menina está presa de novo o lunático não vai deixar ela sair também quem mandou ser tão idiota.
A outra está cheia de raiva querendo enfiar uma faca na garganta dele então tive que acorrentá-la.
E essa dai que devia ficar vigiando dormiu no ponto e tudo aconteceu por causa do descuido dela. Agora fica implorando para não ficar no escuro é uma covarde mesmo.
Que droga de dor!!!
“Oi tu está bem? Estou te achando um pouco pálida...”
“É só uma crise de enxaqueca. Vou ter que tomar os remédios, mas aí terei que ir pra casa. Te importas?”
“Não. Claro que não. Sei que se tu ficar irá ser pior. O trabalho não vai render. E, de qualquer forma, tu é a chefe, né?” riu.
“É é eu sou a chefe” sorri. “Vou terminar essa frase aqui e já vou então. Toma cuidado com eles porque estão impossíveis.”
“Tomar cuidado com quem?”.
“Com eles, ora. Tu sabes de quem eu estou falando”.
“Oookkk” ele disse esticando a palavra e me olhando esquisito. Ele gosta de fingir que não sabe nada do meu setor.
E sempre acha que eu estou um pouco pálida. Será que ele não percebe que eu sei que ele quer tomar o meu lugar?
Se ele pudesse ele tomava minha vida. Desgraçado.
Vou no banheiro tomar os remédios pode ser que alivie e eu consiga ficar ele não vai ganhar assim tão fácil. Pelo menos não hoje.
É, o espelho nunca mente estou mesmo meio pálida na realidade pareço uma boneca de cera. Acho que três comprimidos são suficientes não não tem dado certo seis então isso vou tomar seis. Agora de volta a minha mesa.
Engraçado eles pararam de gritar. Está até silencioso demais o que será que essas figurinhas patéticas estão aprontando?
Ei o que está havendo?
Ela não responde. Deve estar me ignorando como sempre faz ou...
“Aaaahhhhh!” que dor.
“O que está acontecendo?” ele veio correndo da sala ao lado.
Que dor que dor que dor.
“Aaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh!!!!!!” meu corpo começa a sacudir e eu não consigo controlá-lo.
Dor dor dor. Eu não vou aguentar meu pescoço está endurecendo meu corpo está endurecendo não consigo me mexer.
“Alguém chame uma ambulância ela não para de gritar”.
Tudo está escurecendo socorro socorro!
Meu Deus onde estou? Tem uma claridade ali fora mas aqui está muito escuro onde estou?
“Então, Dr., o que ela tem?”
“Ainda não sabemos bem, parece que ela teve uma convulsão. O sr. sabe se ela estava tomando algum remédio?”
O que tu está fazendo aqui?
Ora estou vigiando como tu me pediu. Já que tu está aqui eu posso ir agora?
Mas eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar ali fora, cuidando de tudo. O que tem naquele cubículo?
Eu acho que tu sabes o que tem ali dentro.
“Ela me disse que estava tomando um remédio forte para a enxaqueca”.
“Sabe dizer qual era?”
“Não Dr., não sei. Mas, espera aí, deve estar na bolsa dela. Deve estar aqui dentro. Ah! Aqui está”.
Claro que eu não sei porque deveria saber? Tu é sempre tão imbecil assim?
Claro que sabes tu mesma mandou que eu colocasse eles ai.
Como assim ‘colocasse eles ai’? Eu vou entrar.
Acho que não seria uma boa ideia...
Ora quem manda aqui sou eu e eu vou entrar.
“O sr. sabe quantos comprimidos ela tomou?”
“Não Dr. Não sei.”
Meu Deus são eles eles estão aqui.
O louco está aterrorizando a menininha para variar. Deve estar dizendo coisas horríveis pela expressão dela a garota está furiosa num canto tentando se soltar seus tornozelos estão sangrando mas ela não consegue chegar onde os outros dois estão e fica gritando com o lunático para ele deixar a guriazinha em paz.
É terrível é terrível... faz alguma coisa pamonha eu te pago pra cuidar das coisas.
Eu não posso fazer nada tu nunca deixa.
Como não deixo eu eu nunca quis que isso acontecesse.
Eu não posso fazer nada eu não mando nada aqui.
Onde nós estamos?
Tu sabes onde nós estamos já disse.
“Na verdade ela tomou mais do que deveria, duas vezes mais”.
“E quando ela vai melhorar, Dr.?”
Meu Deus...
“Ela tem parentes?”
Eu não sei, ela nunca fala nada. O que foi que ela fez Dr.? Pode me falar, ela é minha amiga”.
“Ela só queria que as vozes parassem”.
“Como assim? Quando ela vai ficar boa? Que remédio é esse?”
“Vai pra casa filho. Ela não vai voltar. Pelo menos não por um bom tempo”.
Meu Deus me tirem daqui por favor me tirem daqui!!!!

Eu estou dentro da caixa eu estou dentro da caixa com eles por favor me tirem daqui é tão horrível eu estou dentro da caixa estou dentro da caixa com eles dentro da caixa...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

PARTICIPAÇÃO NO BLOG FANTASYANDO

Fui convidada pelo Rodrigo Cáceres a participar de seu novo projeto: um blog que visa apresentar resenhas, artigos, trailers e dicas de livros e filmes de ficção científica, terror e fantasia.
Já tenho algumas postagens no blog.
Assim, convido os leitores e amigos do meu blog para conhecer esse novo projeto, cuja participação está sendo muito legal para mim.
Deixo aqui o link do blog e da página no face.
Visitem, leiam, curtam, comentem. Acredito que vocês vão gostar.

Blog:
http://blogfantasyando.blogspot.com.br/

Facebook:
https://www.facebook.com/fantasyando?ref=profile

domingo, 6 de outubro de 2013

MATER

Eu amo meus monstros

Meus pesadelos

Minhas criaturas estranhas

Com o amor furioso e incondicional de uma mãe

Que sabe bem quem são aqueles que nutre em seus peitos

Mas não desiste de acalentá-los

Pois tem a vã esperança de que possa contê-los.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

HIDROVIAGEM*

Hidroviária. Dia cinzento. Laguna estranhamente calma. Cheiro esquisito, nem bom, nem ruim: mormacento.
Ao longe, pessoas flutuam deslizando pela água transubstanciada. Vão de remo em remo, vela ou ronco diesificado.
Uma Suzuki paira sobre a água. Cento e cinquenta pulsações de um coração mecânico, momentaneamente silencioso. O desejo de voar reduzido ao estoque de energia que ela consegue acumular em seu estômago de aço.
Asas de duas cores balançam deslocando o ar. Elas rodeiam lascas de piscinios que mal conseguem alcançar na rasante descida entre as correntes de água e vento.
Subo na prancha. Vai começar a travessia: indo para acabar voltando. Do outro lado, pouco mais que areia de praia e uns quadrados que parecem sobrepor-se a água do canal. São trinta minutos para desbravar as ondulações traiçoeiras.
Mas no meio do caminho, o céu torna-se obtuso, assume um tom de chumbo trovoante. Entre os dois braços turbulam murmuromarinhos. Ao fundo, escorregando vagarosamente, monstros de aço rangem seus anteparos ou reparos. Avista-se um cemitério de naufragados corroídos pelo salino.
Ainda se vê um roncador deslizando pela laguna, transportando sabe-se lá que sementes ou malefícios.
Por fim, a nebulosa cerrania despenca em fios sobre os passadeiros viajantinos, que apenas queriam fazer a travessia sem rumores ou assustantes ventanias.
O motor da mísera chata ronca, pulando levemente coriscas ondas, e um cruento suspiro lambe os cabelos navegantes.
Vai surgindo adiante uma distorcida concretude, formando coisas, andaimes, pinos, olhos de espera: são os pousadouros dos citadinos.
Balança com dificuldade a nau transvazante para chegar ao seu destino. Restam poucos minutos para abalroarmos nos pedregulhos do aportador da vila. Desponta a poucos nós o vulto de um mínimo casario.
Enfim, chego ao lugar esquecido, mas agora quase vivo, do outro lado de uma laguna que bem poderia ser mar, se já não fosse quase rio. Irei transitar por grãos de areia até acabar minha vespertina faina deste dia.

Depois eu apenas vou voltar numa outra morracenta saltadora de ondas. Serão mais trinta minutos e qualquer sonho acalentado encontrará o seu final no mesmo ponto de partida.

*Só faltou a foto... e a companhia de Lewis Carroll.