O dia estava muito bonito. As pessoas
caminhavam tranquilamente na pacata cidade no domingo ensolarado. Ela curtia o
sol, sorrindo feliz pelo fato de poder desfrutar uma folga, enquanto fazia
jogging às 7h da manhã num dia de verão tórrido.
Mas aí o celular resolveu criar
vida. “Droga, porque eu tinha que trazer esse negócio comigo”, pensou
contrariada.
No entanto, atendeu. Era seu dever,
fazer o que.
-Alô? Sei, mas hoje é minha folga.
Sim... entendo. Realmente é muito triste. Chegarei as 8h30, está bom? Estou um
pouco distante de casa. Ok. Até breve.
Ficou contrariada, mas a situação
que interrompeu seu domingo sorridente era totalmente imprevisível, por isso
ela decidiu perdoar os patrões.
“Creio que fariam o mesmo por mim,
se eu estivesse na mesma situação”, raciocinou para se consolar, embora não
acreditasse muito da bondade do casal que a contratara. Mas, enfim, nem sempre
as aparências correspondem à verdade sobre as coisas, os fatos e as pessoas.
Chegou em casa, tomou um banho
rápido, trocou sua roupa pelo uniforme e saiu em disparada pelas ruas de Rio
Grande, com sua Biz. Chegou pontualmente na casa em que trabalhava. O casal já
a esperava na sala com a porta aberta. Tinham uma expressão de lástima e dor
estampada na cara, vestiam roupas num tom sóbrio de cinza.
-Bem, ela ainda está dormindo.
Sentimos por interromper teu descanso...
-Tudo bem. – Ela disse. – Nessa
situação dessas eu não deixaria vocês na mão. Podem ir, e sinto muito.
Eles balançaram a cabeça em
assentimento. Um olhar de gratidão refletiu nos olhos da patroa, enquanto ela
derramava algumas lágrimas. Saíram, entraram no sedan preto. O patrão deu a
partida e o carro deslizou rua abaixo, em direção a um lugar que ninguém
gostaria de visitar.
Ela suspirou, fechou a porta e se
dirigiu para o andar de cima. Bateu de leve na porta do quarto e entrou.
Observou um monte debaixo do cobertor, encolhidinho. Como era estranho: as
pessoas vão encolhendo a medida que envelhecem. Parece que o corpo voltava,
gradualmente, a infância, só que agora todo enrugado.
Aproximou-se da cama e sentiu um
leve ressonar. Os cabelos branquinhos que apareciam ali lhe despertavam certa
ternura, pelo menos enquanto sua dona dormia. Quando estava acordada, a velha,
às vezes, podia ficar bastante irritante ou tornar-se furiosa.
Ela estava entrando nos estágios
finais do Mal de Alzheimer, com todas as mazelas que essa doença traz. No
entanto, ainda tinha alguns momentos de lucidez. Nessas ocasiões era possível
ver a pessoa que ela fora um dia: de personalidade forte, mas gentil.
Ela checou alguns medicamentos e
horários de administração. Estava tudo sob controle. Os patrões também já
tinham dado o café da manhã para a senhora acamada. De fato, apesar de suas
desconfianças, o casal ajudava a cuidar bem da sua paciente.
Então, a velhinha acordou. Ela
percebeu pela mudança do ritmo da respiração. Ficou preparada para um dos
surtos matinais da enferma, ainda de costas, estudando as informações sobre a
cômoda. Respirou fundo e se virou.
Ela encarou os olhos da senhora,
mas, ao contrário, eles estavam tranquilos, plácidos, quase sãos. “Acho que
vamos ter uma manhã boa, hoje”, ela pensou um tanto contente.
-Bom dia, tia! – exclamou
sorridente e em tom carinhoso, mas profissional. – A senhora dormiu bem? Como
estamos hoje?
-Dormi bem, sim, minha filha. – a
tia respondeu com uma voz nem fraca nem forte, uma voz que todos os idosos têm,
no entanto, hoje levemente chiada, barulho que vinha do seu peito, mais
precisamente, e afetava as cordas vocais da velhinha, estranhamente recuperada
nessa manhã de tristeza para sua família. – Só tive um sonho meio esquisito.
Sonhei que minha irmã havia falecido, depois de pegar uma febre terçã. Dizem
que isso é sonho ruim. Mas eu não acredito nessas bobagens, não, viu? Não
precisa ficar com medo. Mas me lembra de telefonar pra ela mais tarde. Deve ser
saudade esse aperto no peito.
“Coitada, quando souber, não quero
nem ver. Se bem que ela pode esquecer do telefone a qualquer momento. Amanhã,
ela nem vai lembrar do sonho”.
-Pode deixar tia, eu lembro a
senhora sim. Quer sentar em sua cadeira agora e ir lá pra baixo comigo? Podemos
ouvir música como da última vez ou ver televisão. Melhor! Ver um daqueles
filmes antigos que a senhora gosta.
-Ah! Eu gostaria sim, minha filha.
Vamos ver filmes. – e a velhinha riu, seu risinho de velhinha que parece que
vai praticar um grande delito.
-Então vamos lá. – Ela disse,
ajudando sua paciente a trocar de pijama, depois puxando a cadeira de rodas
para perto da cama. Segurou a velhinha por baixo dos braços e levantou-a.
“Estranho. Ela está um pouco
quente”. – pensou.
-Tia, a senhora está se sentindo
bem?
-Sim, minha filha, somente com um
pouquinho de frio. Podemos levar meu cobertor vermelho lá para baixo? Acho que
vai chover, sempre sinto frio quando vai cair chuva.
-Sim, tia, levamos sim. – ela
colocou o cobertor sobre as pernas da velhinha e pegou o termômetro para medir
a temperatura da enferma no andar debaixo, quando ela já estivesse acomodada
diante da televisão.
Após os preparativos e quando o
filme já estava rodando no blue-ray, ela disse para a tia:
-Vou colocar o termômetro para ver
sua temperatura, a senhora está um pouquinho febril. Não tira do lugar, ok?
-Ok, minha filha. – disse a
velhinha sorrindo para a tv e para a acompanhante.
“Ela está bem lúcida hoje”, pensou
a jovem contente.
-Hum, eu gosto muito desse filme. –
A tia disse. – Filme de terror muito bem feito. Boris Karloff era um dos meus
atores preferidos.
Ela sorriu da lembrança da tia.
“Que doença estranha, faz a gente lembrar de coisas sem importância e esquecer
o que importa. Isso é tão triste. Maldição por não terem encontrado a cura
ainda”.
Ela preparou uma xícara de café e
sentou no sofá, ao lado da cadeira da velhinha, que olhava com olhos
arregalados a televisão, com o mesmo medo do filme, como quando ela o viu pela
primeira vez.
A acompanhante notou a doente
coçando calmamente o braço. Estranhou o gesto, porque a tia não tinha o hábito
de se arranhar. Ela pegou o termômetro antes de verificar o machucado que
estava incomodando a velhinha.
Temperatura: 38,5°.
“A tia está com febre. Melhor eu
dar o remédio antes que piore”. Ela buscou o comprimido e disse:
-Tia, toma esse remedinho aqui. A
senhora está com um pouquinho de febre e não queremos que isso piore, né?
-Não, não queremos, minha filha,
isso deixaria meus sobrinhos muito preocupados. Eu não quero incomodá-los hoje.
Eles precisam descansar também. – a tia disse totalmente lúcida. – Sim, acho
que tenho um pouco de febre mesmo, está tão frio. Tem mais um cobertor? Ah!
Essa é a parte que mais gosto do filme. – disse apontando para a tela onde se
via uma criatura se arrastar pela sala de uma casa, pegando uma pessoa pelo pescoço
e...
Ela percebeu que a senhora coçava
com mais força o braço. Resolveu verificar o que era.
Quando arregaçou a manga do pijama
ela notou horrorizada a marca de dentes no antebraço branquinho da senhora. Ao
redor da mordida via-se um tom avermelhado como se fosse gangrena e pequenas
veias, que iam estourando aqui e ali, se espalhando pela região como um mapa
macabro.
-Tia, quem fez isso com a senhora?
– ela perguntou, com medo de descobrir que, na realidade, aquele casal que a
contratara e parecia se importar com sua paciente, eram dois sádicos que
gostavam de torturar seres indefesos.
A velhinha olhou para o local que
ela apontava e disse:
-Não sei, minha filha, apenas
acordei hoje e vi isso aí. Será que um rato me roeu durante a noite?
-Não, isso é uma mordida de gente.
Foi a senhora que fez?
-Não, não. Apenas apareceu aí, não
sei como. – a tia respondeu calmamente. – Mas não se preocupe querida, logo a
ferida se cura, sempre fui muito rápida em me curar.
-Ok. – ela disse para não alarmar a
velhinha. – Vamos fazer um curativo pra senhora não ficar coçando o machucado,
senão vai piorar. A febre deve ser disso.
Ela buscou os apetrechos e fez uma
limpeza no local. Quanto mais ela limpava, mas porcaria saia. Ela começou a
ficar preocupada, e com nojo, mas resolveu passar uma medicação e cobrir o
local temporariamente, até ver se a febre baixava.
“Se não melhorar, eu levo ela ao
hospital. Acho que vou ter que conversar seriamente com os doutores”.
O tempo transcorria lentamente e o
filme parecia nunca acabar. Ela quase adormeceu no sofá. Lá pelas 11h da manhã
ela olhou a velhinha, que havia parado de coçar o braço e ria até não poder
mais com o filme, que já estava sendo reprisado automaticamente pelo aparelho.
Ela olhou para a tv, havia sangue e alguns corpos mutilados pelo cenário.
Ela olhou para sua paciente. Notou
que a tia estava enrolada em três cobertores.
“Eu não lembro de ter dado três
cobertores para ela”, a acompanhante raciocinou assustada. “Ou dei e não me
lembro? Afinal, acho que dei uma cochilada aqui. Também, era dia de folga e não
tive tempo de dormir para me recuperar”.
Ela tocou a face da tia e sentiu
que estava pegando fogo. “Meu Deus a febre aumentou”. Mediu a temperatura dela
outra vez: 40°.
-Tia, a senhora está bem? A sua
febre aumentou muito.
-Estou menina, não me incomode. –
disse a velha um pouco mais agressiva do que o normal. – Hum, tu é bem
branquinha, como aquela atriz ali do filme. E tão apetitosa...- a tia riu um
riso gutural, olhando para ela como se fosse um pedaço de carne.
-A senhora não está bem, não, vou
chamar seu médico. – A acompanhante disse rumando para o telefone.
-Não precisa fazer isso, não
menina.– a velhinha berrou.
Quando já estava alcançando o aparelho, ela
ouviu um rangido. Parou e olhou para trás. Ficou aterrorizada.
-Já estou bem, já estou bem,
menina. Não vê? – disse a tia em pé dirigindo-se devagar em sua direção.
-Minha filha, acho que lembrei quem
me mordeu. – disse a velha assustada. - Foi minha irmã, durante o sonho. Ela
esteve aqui e me mordeu. Doeu muito. Ela foi muito má, muito mááááááááá.
Ela prolongou a última sílaba,
ficando com a boca aberta. Do orifício negro começou a escorrer uma baba
esverdeada. A tia estacou repentinamente.
Ela viu a velha revirar os olhos,
fechar e abrir a boca, deixando escapar um oooohhhh, misto de dor e rugido. A
tia caiu no chão. Seu corpo começou a tremer incontrolavelmente.
“Convulsões!”, ela pensou enquanto
corria até o corpo caído para sentir a pulsação, que estava bastante fraca. Os
tremores pararam. A tia olhou para ela, como a implorar ajuda.
A respiração da velha parou
totalmente.
Assim como seu coração.
E a temperatura do corpo começou a
baixar a velocidade da luz.
A acompanhante levantou e foi até o
telefone. Digitou um número e disse:
-Por favor, preciso com urgência de
uma ambulância, minha paciente teve uma convulsão. Rápido, acho que ela está
tendo uma parada cardíaca também.
Enquanto ela dizia o endereço para
a atendente do serviço de emergência, sentiu, mais que ouviu, um barulho
arrastado a suas costas.
A atendente, do outro lado da
linha, repetia o endereço informado lentamente, lentamente.
-Sim é esse mesmo, por favor...
Então a acompanhante foi puxada e
empurrada contra o armário por um braço com uma força sobre-humana. Ela só teve
tempo de ver uns olhos cheios de sangue, sentir o fedor que vinha daquela boca
esverdeadamente podre e a dor quando os dentes da tia se cravaram em seu rosto,
arrancando um naco da sua carne branca e apetitosa.
Do outro lado do telefone, a
atendente ouviu um grito pavoroso, depois o barulho do telefone batendo contra
algum móvel, enquanto ela repetia:
-Alô? Alô? O que está acontecendo
aí? Alô, alô?
Lá fora, o sol tórrido de verão
continuava a brilhar.
O céu mantinha seu azul feliz sobre
os habitantes da cidade gris.
Enquanto isso, a tia
saia para caçar na rua tranquila em que morava.