domingo, 22 de março de 2015

A AUSÊNCIA

Eu vi a morte pelo canto do olho esquerdo. De certa forma, foi normal, quase como se aquilo já fosse esperado. Então foi isso, eu vi pelo canto do olho esquerdo aquela figura que ninguém quer encontrar.

Todo mundo acha que ela anda de preto, com um capuz recobrindo a cara descarnada, de órbitas vazias e profundamente negras, e carregando uma foice. Mas, como eu a vi com meu olho esquerdo (logo aquele que não é o melhor), eu posso afirmar que nada disso é verdade. Assim como não é verdade que ela seja uma amiga que venha nos livrar dos sofrimentos deste mundo que é ainda mais torto do que se imagina.

E já vejo teu argumento saltando da tua boca antes mesmo de eu terminar de contar o que sucedeu:

-Cara, se tu viu a tal dona com teu olho esquerdo, e este é justamente aquele que não é o bom, como tu pode afirmar que a morte é totalmente diferente do que as pessoas dizem?

Rebato de forma simples, banal até: muitas vezes se vê melhor com aquilo que sofre algum defeito do que com o que está saudável em nós.

Simples assim, como a morte ser diferente do que se imagina. Às vezes, ver de menos implica em ver mais, quem sabe até melhor.

Mas eu dizia: eu a vi, com meu olho esquerdo ruim, num dia de sol, em pleno verão, enquanto ia para o trabalho. Eu juro que tentei desviar, que tentei fechar os olhos, que não queria parar para conversar com ela. 

Eu não queria nada. 

Apenas continuar meu caminho, chegar ao trabalho, cumprir as oito horas diárias estipuladas em lei (porque hoje eu não aceitaria fazer hora extra de jeito nenhum; a cidade gris sofre com o inferno na terra que está sendo este verão) e voltar para casa, esquecendo todas as obrigações possíveis até o próximo turno.

Eu achei, sinceramente, que tinha conseguido desviar da morte quando percebi que ela deu um passo na direção diversa em que eu ia. Entretanto, acho que ela se arrependeu; voltou sobre as próprias pegadas e foi aí que eu dei de cara com a criatura.

Sabe, foi por um milésimo de segundo. Se eu tivesse esse milésimo teria conseguido escapar daquela cara maldita, indescritível. No entanto, me faltou, talvez, o 'ésimo', ou seja, o sangue frio necessário para evitar o encontro.

Por isso paguei o preço de ver com o olho errado e ruim ela assomar sobre minha pessoa e me tirar tudo o que eu tenho, porque, de fato, eu não vou sair dessa, não.

E aí vem teu novo argumento:

-Cara, não pensa assim. Vai ficar tudo bem. Tudo tem conserto.

É eu estou rindo, apesar da situação, mas preciso rir, porque este é o argumento que todos usam para aqueles que chegaram onde eu cheguei: neste instante, onde a gente encontra a morte, com seu sorriso lúgubre e com a imagem que ninguém quer acreditar que ela tem, ou seja, nenhuma.

Ela não tem cara, não tem olhos, braços, pernas, muito menos capuz e foice. Na realidade ela é uma ausência total, branca e ofuscante. Chega a machucar os olhos quando surge. Deve ser por isso que eu a vi com o olho esquerdo. E dolorosa, terrivelmente dolorosa quando toca o corpo da gente e nos carrega para dentro da sua ausência.

Mas agora não sinto nada, nada mesmo. Além da sensação de que todos os fluidos do meu corpo já se foram e a ausência está avançando para meu tórax. Sabe, em breve ela vai chegar aos meus braços e, por fim, ao meu cérebro. Então eu não verei mais nada e será um alívio isso. 

Um alívio.

Sim, eu escutei tu dizer que a ambulância já está chegando. Estou sentindo tu alisar meus cabelos curtos e ensopados de suor frio. Sinto teu olhar de compaixão sobre mim. Estou até vendo as lágrimas que estão começando a escorrer pelo teu rosto, porque, no fundo, por mais otimista que tu queiras ser, tu já sabe o final desse encontro casual que tive. 

Agradeço estares segurando minha mão, enquanto estou aqui começando a arquejar, assim como ouço teus berros desesperados para que os curiosos abram caminho para os socorristas. 

Mas, sinceramente moço, pode descansar, não vai dar tempo, eu já disse. Quando eu a vi, eu soube que não restaria nada para juntar.

Aliás, existe, sim, partes para juntar... no asfalto: estou vendo daqui, com um pequeno levantamento de pescoço, meus braços e meu tórax inteirinhos. Claro que também vejo algo enrodilhado escapando do fim do meu tronco, junto com os meus fluídos vitais. E ali adiante, coisa de uns poucos metros, um par de pernas meio tortas, talvez totalmente quebradas, ainda unidas por aquela que um dia foi minha cintura.

Tu não consegue olhar, eu sei. Estás com ânsias de vômito. Realmente compreensível, por isso te peço que não olhes.

-Olha, eles chegaram a maca está aqui!

Sim, estou vendo os socorristas em pé ao nosso lado. A maca a espera. Mas não adianta. Ela já chegou aos meus olhos, não vejo nada além da ausência branca. Então vou parando de falar contigo, viu? Agradeço o consolo, de coração.

Então é isso. 

A ausência chegou ao meu cérebro. 

Finalmente.