segunda-feira, 24 de junho de 2013

A INSÓLITA CORAGEM

Deveria ser assim que nascem os heróis, de alguma situação banal ou extrema que conduz a pessoa a uma ação aparentemente insignificante ou de real importância.
Maria era uma garota comum; não era bonita, não era muito inteligente; não era vaidosa e muito menos conhecida por sua coragem. Ao contrário, em geral os colegas diziam que ela era até bem covarde.
Bastava alguém falar um pouco grosso, seja por querer ou por brincadeira, e Maria já se encolhia, fosse por medo ou apenas para preservar seu corpo miúdo de qualquer tentativa de aproximação. Ela detestava ataques físicos, tanto quanto detestava quando lhe passavam a mão, de forma indulgente, na cabeça.
Maria era quieta. Era tímida. Era nervosa e tinha um risinho estranho quando via que a pressão a sua volta queria sufocá-la.
Maria sufocaria com sua própria respiração se pudesse ou fosse possível. Mas o instinto de sobrevivência do corpo era maior do que a aparente molenguice da Maria.
Por isso ela não sufocava.
Ou melhor, Maria sufocava, mas não dizia.
Um dia ela estava ali, simplesmente, como de hábito, sufocando sem dizer. Como fazia algumas vezes, Maria estava sentada no cais ao lado da hidroviária, observando o sol refletir nas ondas da laguna, criando ilusões de ótica em que ela se via longe, muito longe, num lugar tranquilo onde poderia dedicar sua vida ao que gostava, embora ela nunca dissesse exatamente o que era.
A guria percebeu, mais uma vez, que uma parte desse seu recanto idílico (sim, embora não muito inteligente, Maria conhecia o significado dessa palavra) estava ruindo por causa das ondas malignas da laguna, que escorriam tudo em direção ao mar que se batia furioso com os Molhes da Barra.
Já que ele não entrava, a água doce entregava a ele os despojos que arrancava das margens da cidade gris. Mas a falta de preservação também fazia sua parte em construir a destruição do local e de muitas outras coisas em Rio Grande.
“Que droga! Aqui tudo desmorona, basta um ventinho mais forte”, a menina pensou sobre o município mais antigo do Estado.
O tempo e o vento, o vento e o tempo fazem sua obra diariamente. E a areia. Claro, a areia, que entrava nos olhos, nos ouvidos, na boca, até chegar ao estômago e sufocar algum coração menos atrevido.
Então Maria estava ali no cais, com os olhos doendo por causa da luz ofuscante e por alguma coisa que ela não sabia de onde vinha e estava meio trancada na garganta, enquanto tudo ia se apagando no transcurso do ponteiro do relógio citadino.
Foi quando ela entendeu o óbvio ululante, sobre sua insípida vida, e que estava passando vagarosamente diante de seus olhos empoeirados, que tudo aconteceu.
A calma fazia a ronda na hidroviária; as pessoas caminhavam apressadas para conseguirem realizar a travessia, em velhas lanchas, até a cidade de São José do Norte, do outro lado do canal do estuário mais perigoso do Estado. Dois PM’s tomavam chimarrão ao sol na frente do posto localizado no Prédio do Comércio.
Entretanto, somente Maria percebeu a sombra que que se deslocava em direção ao cais. Uma sombra cinza, arredia, com cabelos sujos e roupas pobres, que caminhava um passo de agilidade e desequilíbrio, enquanto carregava um saco plástico preto nos braços.
Somente Maria percebeu que o saco se mexia e não por causa do caminhar estranho da pessoa que o carregava.
E, novamente, somente Maria, com seus olhos repletos de poeira, viu quando a criatura atirou o saco na laguna, ficando a observar o mesmo flutuar por algum tempo. Depois começou a falar “já vai tarde, já vai tarde”, rindo de maneira esquisita.
“Meu Deus!”, ela pensou. O saco estava sendo levado pela correnteza, neste dia fraca, e mesmo assim se contorcia. Em seguida ele começou a afundar lentamente.
“O que tu fez, seu filho da mãe!”, Maria gritou. Ela não falava palavrões. Nunca. Achava de mau gosto e ofensivo. Já bastava os que ouvia em casa, sem razão, juntamente com alguns petelecos um tanto fortes e gratuitos.
“Já vai tarde, já vai tarde”, repetia a figura (era um homem), rindo seu riso insano, mas com um olhar de susto pelo grito que recebeu na cara como um tabefe para acordar para a realidade.
Os PM’s e mexeram uns centímetros quando escutaram os gritos, mas suas reações foram tardias.
Maria pulou na água quando o saco estava desaparecendo em meio ao escuro da água fria e fedorenta daquele ponto do cais.
O choque com a parede líquida a fez lembrar que ela não sabia nadar. Nunca aprendera.
“Então é o fim”, ela pensou quando conseguiu emergir desesperada para buscar ar, se debatendo por se saber burra e já morta.
Os PM’s correram para o cais e conseguiram segurar o cara que gritava e ria coisas sem sentido. Um deles se ajoelhou e gritou: “Me dá tua mão, guria”.
Mas ela só pensava que ia morrer e no saco, no saco e no seu caixão.
“E se for uma criança?”, refletiu entre uma respiração e um gole de água suja.
Ela parou de se debater; achou, de alguma forma, certa calma em seu interior conturbado. Conseguiu flutuar naquele caldo agridoce da laguna, como se faz quando se boia na praia. Respirou fundo e começou a submergir.
“Tu é louca!”, berrou o PM, começando a tirar o a farda e o equipamento para se jogar na água. “Chama os bombeiros, uma ambulância, qualquer coisa”, gritou para o soldado.
“mas e o cara aqui?”
“Deixa pra lá, a gente pega ele depois”, o PM mais experiente comandou, se atrapalhando ao tentar tirar o colete, o uniforme, as botinas, o cinto com a arma. Ele nunca fora salva-vidas.
Enquanto isso Maria chegou ao fundo da laguna. A profundidade ali não era das maiores, embora aterradora, por causa da semiescuridão da água lodosa. Ela apalpou umas pedras que sentiu por ali, resquícios do desmoronamento do cais, e foi se agarrando nelas para que a correnteza não a levasse.
Então ela viu. O saco estava ali, contido por dois pedaços de pau, restos de estacas de outro século, que serviam para amarrar as pequenas canoas dos pescadores de antigamente.
O volume ainda se mexia. Maria conseguiu esticar o braço e puxá-lo para si e conseguiu se impulsionar para cima.
Ela voltou a ver a luz do dia outra vez, enquanto o PM ainda tirava a segunda bota para pular na água.
Maria respirou fundo, tossiu, engasgou com a água que entrava na sua boca antes que ela pudesse impedir. Tossiu de novo e respirou.
A correnteza começou a puxá-la, dessa vez inclementemente.
“Ah! Não. Agora não”, ela pensou começando a se apavorar novamente, enquanto o saco se debatia e gania.
Enfim o PM resolveu pular na água com bota e tudo. Puxou a menina pelos cabelos e a arrastou até a beirada do cais.
“Segura ai, moleca, que já vem ajuda”, ele disse no momento exato que o colega voltava dizendo que a ambulância já estava chegando, como, de fato, se podia ouvir pelas sirenes. Que explodiam no ar esfumaçado de Big River.
Eles ajudaram a guria a sair da água, enquanto ela segurava o saco com firmeza. Se o que estava ali não morrera afogado, bem poderia ter morrido pela forma como Maria o segurava entre os braços congelados.
A dupla de brigadas conseguiu arrancar o volume que esperneava desesperado das mãos da menina, para evitar que ela agora o matasse. “E se for uma criança?”, ambos pensavam amedrontados.
O maltrapilho ria e saltava, enquanto dizia, batendo palmas:
“Não foi tarde! Não foi tarde!”.
Eles rasgaram o saco com sofreguidão, esperando que não fosse tarde demais, nem para a menina, nem para a criatura que ali estivesse, nem para eles.
Como dois policiais não notaram aquela movimentação toda a tempo?
Quando o plástico foi arrebentado os dois homens viram duas bolinhas de pelo ali dentro: um cãozinho e um gatinho, que gritavam em desespero.
Os PM’s se sentaram no chão, cansados, nervosos e irritados.
A ambulância estacionou ao lado deles e correu para os restos do saco. Quando os atendentes viram o conteúdo, fecharam a cara e disseram:
“Foi para isso que nos chamaram com tanta urgência?”
“Sim e não”, disse o sargento. “É preciso dar uma olhada na louca que pulou no mar pra salvar essas coisas”.
Enquanto Maria era examinada, o PM perguntou:
“Tu sabia que o saco só tinha dois bichos dentro?”
“Não, não sabia. Mas eu teria pulado mesmo que soubesse”, ela respondeu com uma firmeza estranha no olhar.
O sargento sacudiu os ombros e pensou: “Tem louco pra jogar bicho no mar e tem louco pra salvar. Fazer o que?”
“A guria está bem, só um pouco molhada. Talvez sofra um pequeno choque devido a estripulia que fez”, disse o enfermeiro. “Melhor ela ir pra casa e descansar”.
“Nós levamos. Assim eu já vou ter uma conversa com a mãe dela”. Respondeu o sargento.
“Como se ela fosse dar bola”, pensou Maria.
“E os bichos, sargento?”, perguntou o soldado.
“Sei lá. Deixa eles aí. Pode ser...”
“Não! Eu vou levar dos dois”. Maria se intrometeu, decidida.
Os PM’s sacudiram os ombros e levaram a guria, junto com os filhotes, pra casa dela. O sargento teve uma longa conversa ao pé de ouvido com a mãe de Maria, que só dizia:
“Uhum. Sim, senhor. Não, senhor. Uhum. Ela sempre foi assim meio estranha. Uhum. O senhor tem razão, seu brigada”.
Quando os policiais militares foram embora, a mãe disse que os bichos eram responsabilidade exclusiva de Maria. Depois saiu, disse que ia trabalhar. Maria pensou: “Sei bem onde tu vais”.
Ela cuidou dos filhotes e se deitou. Precisou dormir quase dois dias para se recuperar do choque e cansaço. Sua mãe, aparentemente, tinha parado muito pouco em casa. Infelizmente, os bichinhos não eram desmamados e foram encontrados mortos por Maria, na caixinha com trapos em que ela havia colocado eles.
Ela chorou pelos filhotinhos como teria chorado pelos seus próprios filhos.
Talvez fossem.
Depois disso sua vida voltou quase ao normal.
Maria não foi entrevistada. Ela não virou notícia de primeira página. Ninguém na escola soube o que ela fez.
Nem sua mãe deu importância. Ao contrário, às vezes debocha dela.
Contudo, a menina já não é mais a mesma. Ela encontrou uma forma de ajudar algumas crianças que eram tão incomodadas pelos colegas quanto ela, mas sem precisar usar de brutalidades.
Seu corpo ainda é pequeno, mas sua alma cresceu um pouquinho. Os colegas perceberam isso e começaram a deixar a guria estranha em paz mais seguidamente, assim como alguns de seus protegidos.
Volta e meia Maria vê o vagabundo que atirou os filhotes na laguna perambulando pela cidade.
Ela o ouve murmurando: “Ainda não é tarde! Ainda não é tarde”, com um brilho divertido e esperançoso nos olhos esbugalhados.
Às vezes, Maria dá um lanche para o homem que ela entende perdido. Ele a observa, meio desconfiado. Então parece reconhecê-la e pergunta:
“Já é tarde?”
Ela apenas diz:
“Não, ainda não é tão tarde”. E vai embora, enquanto ele sorri, come o pão e toma o café que ela lhe deu.
Maria sabe que se tornou uma heroína anônima, talvez a salvadora unicamente de seu próprio mundo. Mas isso, por vezes, reflete no mundo dos outros, embora possa parecer um reflexo insignificante.
No entanto, talvez baste isso apenas.
Talvez os atos de insólita coragem, e seus pequenos reflexos, sejam os mais importantes.