Deveria ser assim que nascem os
heróis, de alguma situação banal ou extrema que conduz a pessoa a uma ação
aparentemente insignificante ou de real importância.
Maria era uma garota comum; não era
bonita, não era muito inteligente; não era vaidosa e muito menos conhecida por
sua coragem. Ao contrário, em geral os colegas diziam que ela era até bem
covarde.
Bastava alguém falar um pouco
grosso, seja por querer ou por brincadeira, e Maria já se encolhia, fosse por
medo ou apenas para preservar seu corpo miúdo de qualquer tentativa de
aproximação. Ela detestava ataques físicos, tanto quanto detestava quando lhe
passavam a mão, de forma indulgente, na cabeça.
Maria era quieta. Era tímida. Era
nervosa e tinha um risinho estranho quando via que a pressão a sua volta queria
sufocá-la.
Maria sufocaria com sua própria
respiração se pudesse ou fosse possível. Mas o instinto de sobrevivência do
corpo era maior do que a aparente molenguice da Maria.
Por isso ela não sufocava.
Ou melhor, Maria sufocava, mas não
dizia.
Um dia ela estava ali,
simplesmente, como de hábito, sufocando sem dizer. Como fazia algumas vezes,
Maria estava sentada no cais ao lado da hidroviária, observando o sol refletir
nas ondas da laguna, criando ilusões de ótica em que ela se via longe, muito
longe, num lugar tranquilo onde poderia dedicar sua vida ao que gostava, embora
ela nunca dissesse exatamente o que era.
A guria percebeu, mais uma vez, que
uma parte desse seu recanto idílico (sim, embora não muito inteligente, Maria
conhecia o significado dessa palavra) estava ruindo por causa das ondas
malignas da laguna, que escorriam tudo em direção ao mar que se batia furioso
com os Molhes da Barra.
Já que ele não entrava, a água doce
entregava a ele os despojos que arrancava das margens da cidade gris. Mas a
falta de preservação também fazia sua parte em construir a destruição do local
e de muitas outras coisas em Rio Grande.
“Que droga! Aqui tudo desmorona,
basta um ventinho mais forte”, a menina pensou sobre o município mais antigo do
Estado.
O tempo e o vento, o vento e o
tempo fazem sua obra diariamente. E a areia. Claro, a areia, que entrava nos
olhos, nos ouvidos, na boca, até chegar ao estômago e sufocar algum coração
menos atrevido.
Então Maria estava ali no cais, com
os olhos doendo por causa da luz ofuscante e por alguma coisa que ela não sabia
de onde vinha e estava meio trancada na garganta, enquanto tudo ia se apagando
no transcurso do ponteiro do relógio citadino.
Foi quando ela entendeu o óbvio
ululante, sobre sua insípida vida, e que estava passando vagarosamente diante
de seus olhos empoeirados, que tudo aconteceu.
A calma fazia a ronda na
hidroviária; as pessoas caminhavam apressadas para conseguirem realizar a
travessia, em velhas lanchas, até a cidade de São José do Norte, do outro lado
do canal do estuário mais perigoso do Estado. Dois PM’s tomavam chimarrão ao
sol na frente do posto localizado no Prédio do Comércio.
Entretanto, somente Maria percebeu
a sombra que que se deslocava em direção ao cais. Uma sombra cinza, arredia,
com cabelos sujos e roupas pobres, que caminhava um passo de agilidade e
desequilíbrio, enquanto carregava um saco plástico preto nos braços.
Somente Maria percebeu que o saco
se mexia e não por causa do caminhar estranho da pessoa que o carregava.
E, novamente, somente Maria, com
seus olhos repletos de poeira, viu quando a criatura atirou o saco na laguna,
ficando a observar o mesmo flutuar por algum tempo. Depois começou a falar “já
vai tarde, já vai tarde”, rindo de maneira esquisita.
“Meu Deus!”, ela pensou. O saco
estava sendo levado pela correnteza, neste dia fraca, e mesmo assim se
contorcia. Em seguida ele começou a afundar lentamente.
“O que tu fez, seu filho da mãe!”,
Maria gritou. Ela não falava palavrões. Nunca. Achava de mau gosto e ofensivo.
Já bastava os que ouvia em casa, sem razão, juntamente com alguns petelecos um
tanto fortes e gratuitos.
“Já vai tarde, já vai tarde”,
repetia a figura (era um homem), rindo seu riso insano, mas com um olhar de
susto pelo grito que recebeu na cara como um tabefe para acordar para a
realidade.
Os PM’s e mexeram uns centímetros quando
escutaram os gritos, mas suas reações foram tardias.
Maria pulou na água quando o saco
estava desaparecendo em meio ao escuro da água fria e fedorenta daquele ponto
do cais.
O choque com a parede líquida a fez
lembrar que ela não sabia nadar. Nunca aprendera.
“Então é o fim”, ela pensou quando
conseguiu emergir desesperada para buscar ar, se debatendo por se saber burra e
já morta.
Os PM’s correram para o cais e
conseguiram segurar o cara que gritava e ria coisas sem sentido. Um deles se
ajoelhou e gritou: “Me dá tua mão, guria”.
Mas ela só pensava que ia morrer e
no saco, no saco e no seu caixão.
“E se for uma criança?”, refletiu
entre uma respiração e um gole de água suja.
Ela parou de se debater; achou, de
alguma forma, certa calma em seu interior conturbado. Conseguiu flutuar naquele
caldo agridoce da laguna, como se faz quando se boia na praia. Respirou fundo e
começou a submergir.
“Tu é louca!”, berrou o PM,
começando a tirar o a farda e o equipamento para se jogar na água. “Chama os
bombeiros, uma ambulância, qualquer coisa”, gritou para o soldado.
“mas e o cara aqui?”
“Deixa pra lá, a gente pega ele
depois”, o PM mais experiente comandou, se atrapalhando ao tentar tirar o
colete, o uniforme, as botinas, o cinto com a arma. Ele nunca fora salva-vidas.
Enquanto isso Maria chegou ao fundo
da laguna. A profundidade ali não era das maiores, embora aterradora, por causa
da semiescuridão da água lodosa. Ela apalpou umas pedras que sentiu por ali,
resquícios do desmoronamento do cais, e foi se agarrando nelas para que a
correnteza não a levasse.
Então ela viu. O saco estava ali,
contido por dois pedaços de pau, restos de estacas de outro século, que serviam
para amarrar as pequenas canoas dos pescadores de antigamente.
O volume ainda se mexia. Maria
conseguiu esticar o braço e puxá-lo para si e conseguiu se impulsionar para
cima.
Ela voltou a ver a luz do dia outra
vez, enquanto o PM ainda tirava a segunda bota para pular na água.
Maria respirou fundo, tossiu,
engasgou com a água que entrava na sua boca antes que ela pudesse impedir.
Tossiu de novo e respirou.
A correnteza começou a puxá-la,
dessa vez inclementemente.
“Ah! Não. Agora não”, ela pensou
começando a se apavorar novamente, enquanto o saco se debatia e gania.
Enfim o PM resolveu pular na água
com bota e tudo. Puxou a menina pelos cabelos e a arrastou até a beirada do
cais.
“Segura ai, moleca, que já vem
ajuda”, ele disse no momento exato que o colega voltava dizendo que a
ambulância já estava chegando, como, de fato, se podia ouvir pelas sirenes. Que
explodiam no ar esfumaçado de Big River.
Eles ajudaram a guria a sair da
água, enquanto ela segurava o saco com firmeza. Se o que estava ali não morrera
afogado, bem poderia ter morrido pela forma como Maria o segurava entre os
braços congelados.
A dupla de brigadas conseguiu
arrancar o volume que esperneava desesperado das mãos da menina, para evitar
que ela agora o matasse. “E se for uma criança?”, ambos pensavam amedrontados.
O maltrapilho ria e saltava,
enquanto dizia, batendo palmas:
“Não foi tarde! Não foi tarde!”.
Eles rasgaram o saco com
sofreguidão, esperando que não fosse tarde demais, nem para a menina, nem para
a criatura que ali estivesse, nem para eles.
Como dois policiais não notaram
aquela movimentação toda a tempo?
Quando o plástico foi arrebentado
os dois homens viram duas bolinhas de pelo ali dentro: um cãozinho e um
gatinho, que gritavam em desespero.
Os PM’s se sentaram no chão,
cansados, nervosos e irritados.
A ambulância estacionou ao lado
deles e correu para os restos do saco. Quando os atendentes viram o conteúdo,
fecharam a cara e disseram:
“Foi para isso que nos chamaram com
tanta urgência?”
“Sim e não”, disse o sargento. “É
preciso dar uma olhada na louca que pulou no mar pra salvar essas coisas”.
Enquanto Maria era examinada, o PM
perguntou:
“Tu sabia que o saco só tinha dois
bichos dentro?”
“Não, não sabia. Mas eu teria
pulado mesmo que soubesse”, ela respondeu com uma firmeza estranha no olhar.
O sargento sacudiu os ombros e
pensou: “Tem louco pra jogar bicho no mar e tem louco pra salvar. Fazer o que?”
“A guria está bem, só um pouco
molhada. Talvez sofra um pequeno choque devido a estripulia que fez”, disse o
enfermeiro. “Melhor ela ir pra casa e descansar”.
“Nós levamos. Assim eu já vou ter
uma conversa com a mãe dela”. Respondeu o sargento.
“Como se ela fosse dar bola”,
pensou Maria.
“E os bichos, sargento?”, perguntou
o soldado.
“Sei lá. Deixa eles aí. Pode ser...”
“Não! Eu vou levar dos dois”. Maria
se intrometeu, decidida.
Os PM’s sacudiram os ombros e
levaram a guria, junto com os filhotes, pra casa dela. O sargento teve uma
longa conversa ao pé de ouvido com a mãe de Maria, que só dizia:
“Uhum. Sim, senhor. Não, senhor.
Uhum. Ela sempre foi assim meio estranha. Uhum. O senhor tem razão, seu brigada”.
Quando os policiais militares foram
embora, a mãe disse que os bichos eram responsabilidade exclusiva de Maria.
Depois saiu, disse que ia trabalhar. Maria pensou: “Sei bem onde tu vais”.
Ela cuidou dos filhotes e se
deitou. Precisou dormir quase dois dias para se recuperar do choque e cansaço.
Sua mãe, aparentemente, tinha parado muito pouco em casa. Infelizmente, os
bichinhos não eram desmamados e foram encontrados mortos por Maria, na caixinha
com trapos em que ela havia colocado eles.
Ela chorou pelos filhotinhos como
teria chorado pelos seus próprios filhos.
Talvez fossem.
Depois disso sua vida voltou quase
ao normal.
Maria não foi entrevistada. Ela não
virou notícia de primeira página. Ninguém na escola soube o que ela fez.
Nem sua mãe deu importância. Ao
contrário, às vezes debocha dela.
Contudo, a menina já não é mais a
mesma. Ela encontrou uma forma de ajudar algumas crianças que eram tão
incomodadas pelos colegas quanto ela, mas sem precisar usar de brutalidades.
Seu corpo ainda é pequeno, mas sua
alma cresceu um pouquinho. Os colegas perceberam isso e começaram a deixar a
guria estranha em paz mais seguidamente, assim como alguns de seus protegidos.
Volta e meia Maria vê o vagabundo
que atirou os filhotes na laguna perambulando pela cidade.
Ela o ouve murmurando: “Ainda não é
tarde! Ainda não é tarde”, com um brilho divertido e esperançoso nos olhos
esbugalhados.
Às vezes, Maria dá um lanche para o
homem que ela entende perdido. Ele a observa, meio desconfiado. Então parece reconhecê-la
e pergunta:
“Já é tarde?”
Ela apenas diz:
“Não, ainda não é tão tarde”. E vai
embora, enquanto ele sorri, come o pão e toma o café que ela lhe deu.
Maria sabe que se tornou uma
heroína anônima, talvez a salvadora unicamente de seu próprio mundo. Mas isso, por
vezes, reflete no mundo dos outros, embora possa parecer um reflexo
insignificante.
No entanto, talvez baste isso
apenas.
Talvez os atos de insólita coragem,
e seus pequenos reflexos, sejam os mais importantes.