Como posso me fazer
entender?
Contudo, eu preciso
dizer que, para mim, andar pela Av. Rheinghantz é sapatear no ritmo de outra
época, que já se foi certamente, mas que está tão presente quanto a maresia que
sopra sobre a cidade.
Eu gosto de olhar as
casas do antigo complexo industrial; casas que abrigavam os mestres,
engenheiros ou operários que trabalhavam na antiga fábrica de tecidos. Gosto da
velhice desses casarios, do seu estilo alemão e das figurinhas esculpidas nas
janelas de madeira maciça, que são os olhos dessas habitações que têm um som de
coisas quase esquecidas.
Por esse simples motivo
eu não me importo de esperar aqui no umbral da garagem de uma casa mais moderna
e, creio desabitada, enquanto despenca uma chuva fininha, requentada, sobre a
pista de rolagem desta antiga Avenida. Aguardo pacientemente o começo da
apresentação, que vai ocorrer numa das casas de arte de Rio Grande, observando
essas casinhas, tentando imaginar quem já viveu, ou vive hoje, nelas.
Gosto de tentar recriar
as histórias, verídicas ou não, que elas contêm. Aprecio ver as rachaduras nas
suas paredes, os fiapos de capim crescendo entre elas, testemunhas do quase
abandono que essas sentem recair sobre si; ou ver as reformas que seus atuais
habitantes fizeram e como isso transformou a alma dessas habitações.
Noto que existem duas
delas que estão à venda. Uma, num aglomerado de casinhas geminadas, com corações
esculpidos nas janelas, que são seus olhos para o mundo de fora. Outra, mais
imponente entre as demais, com pátio próprio, telhado resistente, para proteger
moradores e sombras das intempéries que acometem a cidade gris, tão acompanhada
e solitária ao mesmo tempo, com seu ar de seriedade austera, como teriam seus
proprietários originais.
Concluo que eu bem
poderia morar numa dessas duas casas, independentemente do estado em que se
encontram.
Eu poderia morar nelas
ou num estábulo, desde que eu conseguisse sentir que pertenço ao lugar e
tivesse êxito em conferir um pouco de dignidade ao local. Porque, no fim das
contas, dignidade é algo que se pode encontrar num barraco de chão batido e
escapulir de um palácio, ou vice versa.
Mas eu poderia viver em
qualquer lugar: no interior ou na capital, numa vila ou no centro da cidade;
bastaria apenas possuir este sentimento de que pertenço a algo ou a alguma
coisa.
Estranho isso, estar
sem se colocar ou se sentir colocado, sendo e não sendo parte do que te rodeia.
Dizem que esta sensação
acomete aquela classe de seres humanos conhecidos como cosmopolitas: pessoas
que pertencem ao universo; vivem bem em qualquer lugar e convivem naturalmente
com todos os seres, inclusive bichos de estimação com tendências neuróticas.
Entretanto, penso que
essa cosmopolidade, que para alguns cai muito bem e é natural, pode descambar
para um sentimento, mesmo que efêmero, de desprezo pelo resto da humanidade que
não consegue se adaptar a idade contemporânea, com seu desapego por tudo e
todos. Afinal, se tu és parte do cosmos, um cidadão do mundo, ou do universo,
como aceitar que outros não possuam as mesmas condições de adaptação?
Portanto, creio que não.
Eu poderia viver em qualquer lugar, sob a singela condição de que ali, naquele
ambiente eu sentisse essa coisa, que as pessoas comuns sentem, de pertencer ao lugar
em que estão.
Por isso, não sou
cosmopolita.
Sou aquele que está sem nunca estar; o que fica sem conseguir
permanecer muito tempo no mesmo ambiente. Sou apenas alguém que deseja a
normalidade das pessoas que pertencem a algo, mesmo tendo consciência de que
nunca obterá esse estado de espírito.
Assim, me despeço das
casas que poderiam ser minhas, mas não serão. A peça teatral vai começar.
Tenho quase certeza de
que a tragicomédia bem poderá retratar os desencontros em que vivo, durante os
passeios noturnos que faço por esta cidade cinzentamente colorida.