sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

DESLEMBRANÇAS

Preferia a saudade.

Era melhor que esse vácuo que sentia toda vez que saia de casa ou voltava pra ela e se encontrava com a solidão cara a cara. 

Era estranho porque nada havia acontecido, nunca haviam trocado mais do que conversas e sorrisos. Algumas confidências talvez. Nunca tinham tido uma história, nem havia uma música que falasse a seus corações, que sempre haviam batido separados, embora parecessem, às vezes, tão próximos.

Então preferia que tivesse continuado a sentir apenas saudade do pouco que havia acontecido, e dos sonhos do que poderia ter sido.

Saudade era melhor que esse vazio seco, como se concreto tivesse sido derramado no interior do seu corpo e solidificado tudo, deixando sua mente pesada pela falta de sensações.

E aí o que acontecia? O vácuo era preenchido pelo que via, ouvia ou lia.

As músicas que ouvia, os livros que lia, os filmes que via, as melodias que dançava se tornavam as histórias, as músicas, os filmes, as danças que deveriam ser parte da história que poderiam estar vivendo. Era o vácuo sugando algo para alimentar uma escuridão infindável, uma ausência que nunca poderia ser suprida mesmo quando se encontravam.

Mas tudo piorava quando sonhava. Como ontem havia sonhado.

Duas pessoas, frente a frente, apenas falando, olhos nos olhos. E uma simples frase dita, que poderia ter um significado oculto, ou não:

“Nós temos tantas afinidades. Tantas... E a partir de hoje teremos mais afinidades ainda!”

Poderia ser uma premonição. Seria tão reconfortante. 

Toda a excitação da expectativa retornando. Toda a saudade preenchendo novamente o que não mais existia, ou nunca havia existido. Seria intensamente maravilhoso. Sentir a vida novamente fluindo pelas veias, pelo simples fato de que um pouco de esperança voltava a existir.

Olhos nos olhos, todos os significados passam a existir. Ou então o inconsciente os cria, porque um sonho nada mais é do que um desejo repercutindo na escuridão da mente. 

Contudo, não era nada disso. Era apenas o vácuo, simplesmente o maldito vácuo de algo inexistente, se autopreenchendo com coisas que nunca aconteceriam.

Por isso preferia a saudade. Essa é substancial. É palpável. Ainda possui um que de esperança. Saudade não te devora, apenas dói, mas te concede lembranças.

Mas o vácuo que sentia... 

Só produzia em si uma vontade ensandecida de se vingar. Já que seus sentimentos estavam concretados, a única maneira de quebrar esse estado era matar ou morrer.

Decidiu pela primeira opção.Iria vingar-se até extinguir a vida de quem lhe esnobava.

Sua felicidade seria tão evidente que sufocaria o vácuo, a criatura que amava e o universo, num poço de inveja e incerteza sobre os motivos que causaram tal êxtase em si.

Depois, depois seguiria sua vida. Esvaziada de toda essa paixão sangrenta.

Quem sabe, então, pudesse recomeçar outra história, ou voltar a criar outro romance, para preencher o espaço que seu coração redivivo precisaria para continuar batendo.

domingo, 15 de novembro de 2015

CRÔNICAS CURTAS

SOBRE ATOS INSANOS

Mais um ato ‘insano’ num mundo ‘psicopata’.

E não me digam que a culpa é dos refugiados, dos imigrantes, ou de outras culturas, ou diferentes etnias. Todos somos passageiros neste mundo. Todos somos da mesma espécie. 

A maldade não possui cor, etnia, cultura, crença ou espécie. Ela não discrimina nada nem ninguém, apenas fere sem nenhuma explicação ou justificativa.

SOBRE TOLERÂNCIA

A única coisa que eu não tolero é a intolerância.

Posso não gostar de ações, de atitudes e, até, de uma pessoa ou outra, mas respeito é bom e convém a todos. 

Não me calarei diante da hipocrisia e intolerância de pessoas que parecem ser boas, mas discriminam seus semelhantes apenas porque estes não fazem o que aqueles querem.

SOBRE O SILÊNCIO

Eu ando silenciosa, sim.

O silêncio é a melhor arma de defesa porque é a que mais irrita os perversos.

Então, prefiro ficar em silêncio por mais um tempo. A perversidade não consegue vencer esta muralha porque os argumentos silenciosos, na maioria das vezes, são mais pesados do que palavras soltas ao vento. 

Por isso, meu silêncio pesa, porque ele e meus atos falam por mim muito mais que minhas palavras bonitas ou feias.

SOBRE A RAIVA

Eu também perco o controle. 

Até eu mostro minha raiva. Isso me entristece. Mas sou humana. Seria pior se eu não mostrasse nenhuma emoção, nem boa, nem má. 

Talvez isso fosse a prova derradeira de que eu seria mais uma ‘insana’ num mundo ‘psicopata’.

SOBRE PAIXÕES IMPOSSÍVEIS

Uma paixão impossível dói demais.

Eu gostaria de não senti-la. Eu até arrancaria meu coração se ela deixasse de existir. Assim, eu não sofreria nem por mim, nem por ela. 

Mas também não viveria... 

Acho que prefiro continuar sofrendo do que me desapaixonar pela vida.

SOBRE ‘DESABAFOS’ NAS REDES SOCIAIS

De vez em quando até eu grito na rede virtual a irritação que alguns me causam.

No entanto, eu prefiro selecionar quem pode postar no meu mural, excluir pessoas ou comentários ou simplesmente ignorar.

Não debato sobre palavras com pessoas que podem apenas ter uma opinião diferente da minha. Não quero contribuir que ofensores e desocupados, que só querem chamar a atenção para si mesmas, seja por narcisismo, seja por terem pouca autoestima, maculem minha imagem pessoal ou virtual.

Eu prefiro resguardar a minha vida privada e não servir de estimulante ao ‘voyeurs’ de plantão.

Como diz o velho ditado: “roupa suja se lava em casa”, ou na escola, ou na academia, ou no trabalho. Porque quem gosta de fofoca são as revistas de mexerico, os tabloides e afins.

Eu não. 

Eu prefiro a franqueza direta, a resposta dada pessoalmente, em vez de usar a máscara da virtualidade para resolver problemas interpessoais. 

Até quem não gosta da gente, ou vice-versa, merece o respeito de ouvir cara a cara nossas verdades e opiniões.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MAIS UMA VEZ 'ESTRANHAMENTO': POR LEONARDO DE ANDRADE

Caros, amigos, leitores e seguidores:

Meu livro 'Estranhamento' continua despertando atenção.
Desta vez, do colega e escritor Leonardo de Andrade, que dedicou sua primeira análise literária do blog Poltrona Nerd a meu pequeno 'filho'.
Convido vocês a lerem a resenha e conhecerem esse blog tão interessante para quem curte a cultura nerd.

Muito obrigada, Leo! Ficou ótimo!

http://poltronanerd.com.br/livros-e-quadrinhos/review-estranhamento-da-autora-adriane-dias-bueno-22469

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O AROMA DA NOITE

A noite suspira, com seu perfume de espera, com sua cor de conformismo que se apagará apenas quando amanhecer.

Somente os notívagos entendem os aromas, as melodias e os paladares da noite. No entanto, nem eles sabem o que é varar noites e dias a meditar naquilo que se vê, mas para o qual não se encontra explicação.

Como se faz para descrever de maneira compreensível isso? Essa coisa louca, esse ar de tragédia que toma conta do ambiente, vez ou outra, e que dá um nó na garganta de quem a pressente?

E mesmo assim, mesmo diante do perigo, não é possível descrevê-lo, não é possível provar sua existência; nem seu gosto, nem sua cor e muito menos apontar sua causa.

Como se convence alguém de uma maldade não ocorrida ainda; de que, mesmo com todo o cuidado que se tomou, o inimigo já está a sua porta, já adentrou em sua casa e se instalou no cômodo mais importante, com seu ar de inocência induvidosa?

Mas eu o vejo, eu o vejo pela janela deste cômodo. Sinto sua malícia, o odor adocicado que exala de sua boca por sentir o gosto antecipado do sangue que irá derramar.

Eu vejo seus olhos oblíquos percorrendo o ambiente do qual se adonou e onde não há mais aquela luminosidade que tanto conforto e alegria trazia para quem ali vive.

Não há como expulsá-lo. 

Não há meio científico ou de outra espécie que possa, nesse instante, mandá-lo embora, ou para o lugar em que merece estar confinado; ou que consiga acabar com sua influência e exterminar os rastros de suas atrocidades, tão visíveis para mim e tão ocultos para os outros.

Será ingenuidade ter uma mísera esperança de que, quando o dia raiar, todos esses fatos e sensações surgirão, com sua verdade dura, contudo, purificante, diante dos teus olhos e que decidirás exorcizar essa presença malévola?

Será possível crer que o pesadelo terminará no exato momento em que deve terminar e que nada, nenhuma dor resultará dessa visita tenebrosa?

Não, creio que não.

Na realidade, talvez eu deva partir desse castelo antes que o dia raie e eu veja que tu e todos que o habitam jazem mortos, porque não quiseram decifrar esse mistério.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A VISITANTE

Hoje acho que eu vou receber uma visita, minha filha. Por isso, vou esconder todas as fotos. Sabe, eu tenho medo. Já me roubaram algumas, outras estragaram. Então, tive que começar a tomar precauções.

Eu não entendo porque as pessoas fazem essas maldades, sabe, minha filha, pegar coisas que não são suas, ou destruir, principalmente quando se trata de uma coisa que parece uma bobagem, mas que pra quem tem ou guarda é muito importante.

Fotos são assim, menina, acredita na minha experiência. Fotos são importantes porque nos lembram das coisas que a gente viveu. E servem pra refrescar a memória quando já estamos perdendo ela, como ta acontecendo comigo.

É por isso que, às vezes, eu pego meus álbuns e fico olhando os retratos que têm neles. Me lembram da minha mãe, dos meus tios, dos meus amigos, do meu pai... não do meu pai, não, porque a maioria das fotos dele já foi roubada ou estragada por uma criança daninha, filha de uma vizinha, que, de vez em quando, vem aqui e faz uma bagunça terrível, inclusive mexe nos meus retratos e estraga os que pega.

Eu já conversei com a mãe dela, mas não adiantou nada, nada mesmo. A mulher não acredita que sua criança (tão inocente, parece um anjo, com seus olhos verdes, seu cabelo escuro, sua pele branca) possa fazer uma daniesa dessas.

Mas ela faz, minha filha, ela faz.

Eu posso estar velha, mas caduca, ainda não. Por isso, eu sei que ela faz isso.

Mas como eu tava falando: eu fico olhando as fotografias da parentada, que já morreu, ou ainda vive, ou a pouco nasceu, e me dá uma dorzinha no peito, misturada com alegria. É tanta gente que eu fico tentando imaginar como a família cresceu tanto e eu nem percebi. 

Logo eu, que sempre fui muito atenta pra esses registros familiares.

E ajuda com a solidão sabe? Dá pra gente ver que não foi sempre assim sozinha e que as pessoas só não aparecem mais seguidamente ou porque já morreram ou porque não têm tempo mesmo.

Somente os velhos têm tempo hoje em dia. E olhe lá, porque muitos estão bem ativos. 

Eu não, porque... bom, eu não sei bem o porquê, só sei que é difícil pra mim sair dessa casa que dizem que é minhas, mas sinto que não. 

Às vezes eu estranho essa casa, tão cheia de móveis e tão vazia de lembranças. Eu não me recordo muito das coisas que vivi aqui, menina. E quando quero lembrar me dá um aperto na cabeça como se me dissessem que eu não deveria fazer isso. 

Mas não é só isso que a gente tem no final da vida? Lembranças boas ou más?

Não sei, mas penso que, mesmo quando é ruim, melhorar é lembrar do que ficar em dúvida. Depois mudo de ideia. Tenho mudado muito de ideia ultimamente. Isso me deixa constrangida, mas só conto isso pra ti, porque tu é uma menininha muito querida e bonitinha, sempre vem me visitar, com esse teu sorriso bonito, teus olhos verdes, teus cabelos escuros e tua pele clara.

Mas as fotos, claro, as fotos provam que eu sempre morei aqui. Mas quando chego nesses retratos eu pulo. Não gosto do que sinto quando vejo essas fotografias, porque a casa continua a mesma, mas as sombras nos cantos me assustam muito. Parece que tem alguma coisa escondida neles que vai saltar sobre mim e me sufocar até eu morrer sem poder pedir ajuda.

Eu não tenho medo da casa, sabe. Tenho medo é das fotos dos seus cômodos e dos cantos escuros que aparecem nelas. Quando está tudo iluminado e não tem nenhuma foto da casa por perto, fico tranquila. Chego a ronronar como um gatinho satisfeito.

Mas ai surge a filha da vizinha, tira todas as fotos do álbum e me deixa com raiva, essa menina esquisita de pele clara, cabelos negros e olhos verdes. Ela me mostra as fotos e fica rindo porque não consigo me mexer. 

Então ela guarda essas fotografias tristes e começa a estragar as bonitas por pura maldade. Eu não consigo fazer nada pra ela parar, fico só dizendo: “Não faz isso, minha filha, não faz isso minha filha”.

É quando eu olho para o espelho.

Esse mesmo de onde tu me miras e que me reflete enquanto escovo, antes de dormir, meus cabelos escuros quase brancos, minha pele clara enrugada, meus olhos verdes baços. Esse espelho onde te vejo, com tua pele branquinha, teus olhinhos verdes luminosos de esperança e teu cabelinho liso e escuro brilhante, tão pequeninha e inocente.

Acho que essa noite a filha da vizinha não vem, menininha. A visita vai ficar pra outro dia. Deve ser porque tu ta aí no espelho. Então, nenhuma foto será estragada, nenhum canto escuro saltará sobre mim. 

Acho que dormirei em paz essa noite, minha filha. Graças a Deus.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O BAILE

O dia está chovendo hoje.

Ela escuta músicas suaves para acalmar sua mente rodopiante. Sentada no tapete de sua pequena sala sorve o mate que lembra todos os chamamés que dançou, mas não a saciaram.

Ontem, só faltou a valsa para derreter totalmente o aço que estava comprimindo seu coração há um século. Por algumas horas conseguiu esquecer quem era e viver apenas a fração de cada um dos compassos que marcava com seus pés, em geral gastos pelas andanças rotineiras de sua vida.

Notas musicais são as chaves das celas públicas que te prendem, pelo menos de vez em quando.

No meio disso tudo, no entanto, vez por outra saltava aguda a sensação da ausência de algo que não pode tocar. Mais uma vez teve ao menos o consolo de sua imaginação fértil, que supriu a carência sentida. 

Dançou com a imagem que desenhou nas paredes.
Sim, dançou para essa ausência. Fechou os olhos e acreditou que todas as figuras, as trocas de mãos, as inversões de passos, os cruzamentos de pernas eram realizadas, com perfeição, não apenas para sua alegria, mas para satisfazer a presença ausente que a observava das sombras.

Dançou até sozinha, como se dançasse com quem queria.

Voltou para casa exausta. Pernas doloridas, braços dormentes e com o desejo de saber o que pensaria de tudo aquela sombra que somente ela conseguia pressentir.

De fato, hoje está chovendo o dia. O mate esfria na cuia e, estranhamente, é uma música country que ressoa no ambiente, lembrando-a de que, como de hábito, alguns de seus sonhos talvez nunca possam ser concretizados.

Enquanto isso, esse sentimento ausente, que ela não sabe bem dizer o que é, sussurra em seu ouvido:

"Relaxa, falta pouco para voltarmos a bailar".

domingo, 22 de março de 2015

A AUSÊNCIA

Eu vi a morte pelo canto do olho esquerdo. De certa forma, foi normal, quase como se aquilo já fosse esperado. Então foi isso, eu vi pelo canto do olho esquerdo aquela figura que ninguém quer encontrar.

Todo mundo acha que ela anda de preto, com um capuz recobrindo a cara descarnada, de órbitas vazias e profundamente negras, e carregando uma foice. Mas, como eu a vi com meu olho esquerdo (logo aquele que não é o melhor), eu posso afirmar que nada disso é verdade. Assim como não é verdade que ela seja uma amiga que venha nos livrar dos sofrimentos deste mundo que é ainda mais torto do que se imagina.

E já vejo teu argumento saltando da tua boca antes mesmo de eu terminar de contar o que sucedeu:

-Cara, se tu viu a tal dona com teu olho esquerdo, e este é justamente aquele que não é o bom, como tu pode afirmar que a morte é totalmente diferente do que as pessoas dizem?

Rebato de forma simples, banal até: muitas vezes se vê melhor com aquilo que sofre algum defeito do que com o que está saudável em nós.

Simples assim, como a morte ser diferente do que se imagina. Às vezes, ver de menos implica em ver mais, quem sabe até melhor.

Mas eu dizia: eu a vi, com meu olho esquerdo ruim, num dia de sol, em pleno verão, enquanto ia para o trabalho. Eu juro que tentei desviar, que tentei fechar os olhos, que não queria parar para conversar com ela. 

Eu não queria nada. 

Apenas continuar meu caminho, chegar ao trabalho, cumprir as oito horas diárias estipuladas em lei (porque hoje eu não aceitaria fazer hora extra de jeito nenhum; a cidade gris sofre com o inferno na terra que está sendo este verão) e voltar para casa, esquecendo todas as obrigações possíveis até o próximo turno.

Eu achei, sinceramente, que tinha conseguido desviar da morte quando percebi que ela deu um passo na direção diversa em que eu ia. Entretanto, acho que ela se arrependeu; voltou sobre as próprias pegadas e foi aí que eu dei de cara com a criatura.

Sabe, foi por um milésimo de segundo. Se eu tivesse esse milésimo teria conseguido escapar daquela cara maldita, indescritível. No entanto, me faltou, talvez, o 'ésimo', ou seja, o sangue frio necessário para evitar o encontro.

Por isso paguei o preço de ver com o olho errado e ruim ela assomar sobre minha pessoa e me tirar tudo o que eu tenho, porque, de fato, eu não vou sair dessa, não.

E aí vem teu novo argumento:

-Cara, não pensa assim. Vai ficar tudo bem. Tudo tem conserto.

É eu estou rindo, apesar da situação, mas preciso rir, porque este é o argumento que todos usam para aqueles que chegaram onde eu cheguei: neste instante, onde a gente encontra a morte, com seu sorriso lúgubre e com a imagem que ninguém quer acreditar que ela tem, ou seja, nenhuma.

Ela não tem cara, não tem olhos, braços, pernas, muito menos capuz e foice. Na realidade ela é uma ausência total, branca e ofuscante. Chega a machucar os olhos quando surge. Deve ser por isso que eu a vi com o olho esquerdo. E dolorosa, terrivelmente dolorosa quando toca o corpo da gente e nos carrega para dentro da sua ausência.

Mas agora não sinto nada, nada mesmo. Além da sensação de que todos os fluidos do meu corpo já se foram e a ausência está avançando para meu tórax. Sabe, em breve ela vai chegar aos meus braços e, por fim, ao meu cérebro. Então eu não verei mais nada e será um alívio isso. 

Um alívio.

Sim, eu escutei tu dizer que a ambulância já está chegando. Estou sentindo tu alisar meus cabelos curtos e ensopados de suor frio. Sinto teu olhar de compaixão sobre mim. Estou até vendo as lágrimas que estão começando a escorrer pelo teu rosto, porque, no fundo, por mais otimista que tu queiras ser, tu já sabe o final desse encontro casual que tive. 

Agradeço estares segurando minha mão, enquanto estou aqui começando a arquejar, assim como ouço teus berros desesperados para que os curiosos abram caminho para os socorristas. 

Mas, sinceramente moço, pode descansar, não vai dar tempo, eu já disse. Quando eu a vi, eu soube que não restaria nada para juntar.

Aliás, existe, sim, partes para juntar... no asfalto: estou vendo daqui, com um pequeno levantamento de pescoço, meus braços e meu tórax inteirinhos. Claro que também vejo algo enrodilhado escapando do fim do meu tronco, junto com os meus fluídos vitais. E ali adiante, coisa de uns poucos metros, um par de pernas meio tortas, talvez totalmente quebradas, ainda unidas por aquela que um dia foi minha cintura.

Tu não consegue olhar, eu sei. Estás com ânsias de vômito. Realmente compreensível, por isso te peço que não olhes.

-Olha, eles chegaram a maca está aqui!

Sim, estou vendo os socorristas em pé ao nosso lado. A maca a espera. Mas não adianta. Ela já chegou aos meus olhos, não vejo nada além da ausência branca. Então vou parando de falar contigo, viu? Agradeço o consolo, de coração.

Então é isso. 

A ausência chegou ao meu cérebro. 

Finalmente. 








domingo, 1 de março de 2015

DIAS VERMELHOS

A atmosfera mormacenta do outono expele um ar inqualificável sobre a cidade do Rio Grande. O que se sente não é um odor totalmente bom ou ruim, mas certamente é desconfortável. Os moradores da cidade gris sabem que o ar aqui é diferente: carrega algo que fica a espreita, numa semiescuridão ofuscante, buscando presas nem sempre tão puras.

Respirar em Rio Grande sempre foi como ter os pulmões cheios de água e, ao mesmo tempo, secos como o deserto.

Mas o engraçado é que por estes dias o tempo tem estado tão confuso quanto o ar: enregelante, mas muito quente quando menos se espera. E estranhamente silencioso, apesar do barulho que as pessoas e os carros que invadiram a cidade estão fazendo.

Quando amanhece o céu apresenta uma cor avermelhada, que certamente seria considerada normal, não fosse o fato de que este colorido específico pertence à outra estação do ano. Eu percebo a diferença porque moro aqui desde sempre e entendo as nuances que existem no clima e na natureza local. No entanto, de uns tempos para cá, a coisa tem mudado de figura e as estações se mostram meio rebeldes, chegando antes ou depois. 

Sim, tem toda essa história de aquecimento global, de degelo das calotas polares, de poluição, e etc., cientificamente comprovadas. Mas as coisas que tenho visto ou apenas pressentido quando ando pelas ruas da cidade griz não são fruto somente das coisas que falei, como costumam pensar os estudantes e ambientalistas daqui.

Tem algo estranho ocorrendo no céu e no subsolo riograndino. Meus ossos sentem e estremecem. Sinto no pescoço a respiração ofegante e ansiosa de algo que ainda não consegui identificar.

Hoje quando saí de casa o céu estava novamente avermelhado; de um vermelho difícil para alguém descrever. A cor escorria pelo céu de forma esquisita, enquanto o sol meio atrasado de outono começava a tomar conta do dia. As nuvens recortavam a cor enquanto deslizavam pelo ar, dando a impressão que o dia estava pingando sangue.

Eu saí para a rua sabendo que somente conseguiria voltar um tanto tarde da noite, por causa da minha profissão. Eu cavo buracos na cidade mais esburacada que conheço, para tentar consertar estragos na rede de esgoto. Deve ser por isso que pressinto a diferença no ambiente riograndino. 

Os buracos sempre me colocaram frente a frente com os mais estranhos segredos da minha cidade. 

Cheguei ao canteiro de obras no caminhão da empresa, junto com cinco companheiros de trabalho. Eles pareciam que nunca tomavam banho, a cara besuntada pelo sol era escurecida, mas também havia um pouco de sujeira por ali. Isso se percebia pelo cheiro de suor, poeira e bebida que pelo menos três deles exalavam fortemente, os outros dois ainda tentavam disfarçar. Era difícil ver mudas de roupas diferentes sobre os corpos deles também.

Isso me dava certo nojo. Infelizmente, sou daqueles que não consegue passar sem um banho e ao menos duas trocas de roupas por dia. Eu nunca me dei bem com sujeira. Não sei como acabei nessa profissão. Ou talvez saiba, mas não admito.

O buraco havia começado a ser escavado há algumas semanas. Deveria ser bem profundo, pois a empresa iria instalar uma estação elevatória de esgoto. O progresso estava chegando a Rio Grande e o lençol freático não ajudava a melhorar a infraestrutura envelhecida da cidade.

Mas a obra incomodava os moradores porque parecia nunca ter fim. Eu somente observava a cara de insatisfação dos passantes, enquanto eles criticavam a empreitada que parecia nunca acabar e a nós que parecíamos nunca trabalhar.

Tinha até uma menina que costumava passar frequentemente pelo local, seja para ir para o trabalho ou para realizar sua caminhada em dias alternados, que olhava desconfiada para o buraco e, às vezes, resmungava que era uma aberração o transtorno causado pela obra, porque impedia o trânsito pelas calçadas, prejudicava o fluxo de veículos e a empresa ainda deixava restos de material jogado pelos cantos.

Ela fazia uma cara de nojo quando tinha que atravessar a areia solta com suas sandálias chiques e quando sentia o cheiro desagradável que vinha do chão violado. Acho que sei porque ela reclamava tanto. 

Mas o que mais perturbava a guria era a profundidade do buraco. Às vezes ela tentava ver o fundo dele, mas não conseguia e isso a deixava com uma cara gozada, misto de espanto, reflexão e medo. Acho que, assim como eu, ela acreditava que aquilo não deveria ser feito.

Então a escavação chegou a um ponto em que o lençol freático precisava ser rebaixado para que pudéssemos continuar abrindo o buraco maldito. Foi nesse dia que eu comecei a perceber a mudança mais acentuada no céu riograndino. Eu estremeci quando vi aquele tom vermelho no céu. 

Acho que a moça também percebeu porque, quando passou pela obra naquele dia, ela parou brevemente, olhou através de seus óculos escuros para o negrume do buraco e segurou com mais firmeza sua pasta de trabalho. Depois senti que ela me observava, mas não pude tentar decifrar seus pensamentos. 

É difícil ler alguém que se esconde por detrás da escuridão de um par de lentes.

Ela respirou profundamente erguendo os ombros e deixando-os caírem como se um peso imenso e desconhecido houvesse pousado sobre eles. Depois seguiu em seu passo apressado, mas agora não tão confiante, de sempre, balançando levemente a cabeça enquanto passava por mim. Tudo não durou mais de dez segundos em minha opinião. E o jeito dela pareceu confirmar o que eu pensava.

Não se devia revirar dessa forma as profundezas do solo de Rio Grande.

Por fim, o lençol freático foi rebaixado e a escavação prosseguiu por mais alguns metros. Neste dia, devido à urgência da obra (com certeza, mais em razão das reclamações dos cidadãos descontentes) iríamos trabalhar até a madrugada, revezando para descansar na cama vagabunda de um trailer de madeira que tinha sido colocado no canteiro. Servia também para que, nos intervalos, pudéssemos comer uma refeição fria e nojenta.

Foi nessa noite que a escavadeira bateu em algo sólido, fazendo um barulho de pedra contra aço. Achamos que poderia, apesar do tipo de solo existente em Rio Grande, ser uma pedra grande o suficiente para causar o barulho estranho, mas que seria removida rapidamente com o maquinário, e a obra prosseguiria rumo ao seu fim.

Para tentarmos descobrir o tamanho da pedra e removê-la, sem derrubar a frágil estrutura feita de sarrafos que segurava as paredes de areia da escavação, eu e alguns colegas descemos por uma escada para dentro daquele poço escuro com pás, picaretas e até vassouras. O responsável achou por bem dirigir todas as luzes de iluminação improvisadas para o interior do buraco, ideia mais do que óbvia, em vista do perigo que existia no local.

“Eu não ganho para isso”, pensei naquela hora, sentindo um arrepio ao entrar naquela cavidade que parecia uma boca esfomeada. Lembrei da sensação que eu tinha tido quando a moça olhou pro mesmo lugar. Senti um arrepio percorrer meu corpo.

Mas retiramos o máximo de areia possível e tentamos definir onde a pedra começava e terminava. Nós varremos a terra, raspamos o ‘fundo’ do buraco em todas as direções, batendo as pás contra a superfície, que soltava fagulhas ao contato do metal, enchemos e esvaziamos baldes com terra, mas estranhamente não conseguimos delimitar o tamanho da pedra que obrigou a máquina a parar.

Decidimos então levar suportes de luz lá para baixo para verificar a situação e, se fosse necessário, interromper o trabalho até o dia seguinte (o que nos deixaria muito felizes) para que o engenheiro decidisse o que fazer. Afinal, nós éramos apenas peões e se algo desse errado durante a noite a culpa seria jogada sobre nossos ombros embrutecidos, mas sem costas quentes.

Quando as luzes foram posicionadas entendemos porque não havia como delimitar o tamanho do pedregulho. Na realidade, se tratavam de várias pedras, rejuntadas com uma argamassa muito velha, formando uma espécie de calçada ou piso.  “Talvez a gente tenha batido contra a fundação de uma dessas casas antigas e históricas que haviam sido arruinadas pela ganância”, eu estava refletindo quando um colega exclamou:

-Tchê! Acho que achamos uma das galerias secretas que tinham nos fortes aqui do Rio Grande! – disse o Zé, se ajoelhando para sentir a aspereza das pedras.

Eu revirei os olhos. Mais um daqueles!

-Se tu lesses um pouco, saberias que isso não existia aqui. O forte que tinha nessa região foi totalmente destruído. Somente na Praça Sete de Setembro se encontram alguns restos de um dos fortes e isso se a pessoa cavar bem.

-Hunf! – Zé deu de ombros e me olhou com aqueles olhos vesgos e meio desvairados que eu já conhecia a um par de anos. – Se tu lesse um pouco de outras coisas além de livros de história, tu ia ficar sabendo que muitos riograndinos acreditam que os 'portuga' construíram galerias subterrâneas nos fortes para esconder os tesouros que roubaram dos hermanos, dos índios e dos barcos que saqueavam aqui na costa. Eles eram piratas também, ouviu? Pode bater aí, cara. Tu vai ouvir um som oco. Se isso acontecer não vai ter como negar os fatos. – Ele me disse com os olhos chispando e apontando a mão trêmula pela excitação para o chão empedrado.

-Ok, ok. Vamos testar tua teoria. – eu disse conciliador e zombeteiro.

Peguei uma picareta, bati e...

Nada. Nada de nada.

Zé me olhou com raiva.

-Tu parece uma mulherzinha batendo com essa picareta! – Ele rosnou, pegando a ferramenta das minhas mãos. Eu tratei de me afastar. Sabe-se lá o que ele ia fazer. – Tem que bater assim, ó! – Ele disse levantando a picareta e largando ela com toda força sobre as pedras.

Ferro e rocha se encontraram brutalmente e uma chuva de fagulhas voou para todos os lados, assustando uns e fazendo outros rirem da ‘explosão’ provocada pelo bêbado mais contumaz da turma, até que se ouviu um pequeno barulho, que foi aumentando de intensidade com uma rapidez estapafúrdia. O Zé pareceu dançar de um lado para outro enquanto o lugar em que estava em pé começou a ruir.

Os peões se atropelaram para subir pelas escadas, ouvindo o som seco do desmoronamento de uma parte do piso e o grito assustado do Zé. A poeira tomou conta do local, fazendo nosso colega desaparecer num breu aterrorizador.

“É... Parece que o Zé tem razão”, pensei um pouco consternado. “Pelo menos em parte. Vamos ver o que tem aí embaixo”.

Tudo era escuridão e pó. Não se via movimento nenhum. Desci até o que restou do alicerce e gritei para o fosso que parecia que ia me comer vivo:

-Zé?

Nenhuma resposta.

-Zé? Tu tá bem, cara? Zé?

Ouvi um gemido baixinho e depois uma voz rouca falou:

-To... Acho que to bem. Bati a cabeça e tudo ta rodando.

-Espera um pouco que vamos descer aí pra te pegar.

Meus colegas já tinham providenciado uma escada, capacetes e lanternas para descermos até o túnel, enquanto eu falava com o Zé. Eu via a escuridão lá embaixo e pressentia que a coisa não deveria ser boa, mas era preciso catar o Zé do local e descobrir o que havia ali, embora eu já soubesse que isso, esse ‘acidente’, que abriu a boca de algo desconhecido sobre a cidade, iria atrasar a obra mais uma vez.

Eu já visualizava o enxame de estudantes e arqueólogos varejando por ali, tentando explicar o que talvez fosse inexplicável, como alertava meu DNA riograndino, bem como desenterrando alguma coisa que certamente era melhor que ficasse rastejando no lençol freático alto de Rio Grande. 

Contudo, era melhor resgatar o Zé, dar uma olhada nas coisas e avisar de uma vez o encarregado. Quanto mais cedo se resolvesse o problema, mais rápido a obra terminaria e eu voltaria a vagar tranquilo pela city. Portanto, descemos em direção ao breu, com cautela, mas rapidamente. Ninguém queria ficar naquele lugar muito tempo.

Achamos o Zé misturado com alguns pedregulhos, pó e teias de aranha, atirado sobre o piso de uma galeria que realmente parecia ter bem mais de três séculos de existência. Ele estava atarantado, gemia por causa de alguma dor ainda não localizada e pedia alto que a gente se apressasse porque ele estava com um mau presságio. 

Ele estava inteiro, fora um galo feio na cabeça e, possivelmente uma torção num dos pés. Gente que trabalha como tuco-tuco acaba aprendendo a cair, por necessidade, nos fossos que cava. Os colegas retiraram o Zé dos destroços de sua própria ousadia, enquanto eu começava a vasculhar aquele lugar estranho.

A galeria era estreita e, naturalmente, escura. Assim, enquanto meus colegas providenciavam a remoção do Zé eu peguei uma lanterna e avancei alguns passos em direção aquele breu.

A sensação era estranha. A escuridão parecia absorver a umidade do ar, deixando a atmosfera pegajosa. O grude aderia as paredes antigas e escorria na forma de um líquido meio água meio argila. Eu estendi a mão, que pareceu perfurar um tecido invisível que começou a aderir nos meus dedos e tentava se espalhar pelo meu corpo, me fazendo sentir um medo súbito de que eu acabaria sufocando. Quando baixei o braço tive a sensação de que eu nunca mais conseguiria desprender aquele nada do meu corpo.

Independente do que eu descobrisse nesses subterrâneos, eu sabia: nunca mais seria o mesmo.

Quando terminaram de alavancar o corpo do Zé, pesado de sujeira e cachaça, para o exterior do buraco, o encarregado chegou esbaforido na obra. Desceu cautelosamente pela escada até ser absorvido pelas trevas.

-E então, como tá a coisa? O que tem aqui embaixo? – ele perguntou passando um lenço na careca e no rosto obeso empapados de suor, enquanto tentava devassar a escuridão com seus olhos míopes de suíno.

-Não sei, chefe, mas acho que é algo muuuiiito antigo. – Falei esticando as sílabas para que ele se tocasse que a coisa era séria.

-Droga! Isso quer dizer que vamos ter que chamar os caras que desenterram coisas velhas e inúteis. Aí, a obra vai parar novamente e eu vou acabar perdendo meu emprego.

Fiquei com pena. Coloquei minha mão em seu ombro e disse:

-Vamos andar um pouco por aqui. Quem sabe não seja tão antigo quanto parece.

Ele suspirou resignado e começou a caminhar sem direção.

-Eu vou na frente. – falei segurando seu braço. – To com uma lanterna. Mas, acho que seria bom pegar mais uma. Não vamos nos arriscar a ter mais um acidente.

Ele berrou para um dos peões que estavam com a cara enfiada na borda da cratera. Um deles jogou a lanterna em suas mãos dizendo que nenhum deles queria voltar ao lugar. Eles achavam que por ali andava alguma maldição. O chefe respondeu que não queria mesmo imbecis por ali quebrando tudo. Por entre dentes murmurou um ‘covardes’, embora estivesse trêmulo. Era tão supersticioso quanto seus subalternos.

Começamos a andar com cuidado, apontando as lanternas ora para o chão, ora para a frente ou para o teto. O túnel parecia infindável, como uma grande boca fétida disposta a devorar o que encontrasse pela frente. 

Eu mirava o chão com o facho de luz porque percebi um declive no piso, por onde corria um filete de água escura, que brotava da parede e ia morrer um pouco mais adiante, numa fissura no chão da galeria. O pinga pinga naquele buraco era muito enervante.

Nisso, meu chefe colocou a mão no meu braço e soltou um sussurro esganiçado, misto de horror e incredulidade.

-Cara, olha aquilo!

Virei a luz da lanterna para a direção em que meu chefe apontava com o dedo trêmulo. Percebi uma sombra se movendo pela parede: uma coisa esquálida e avermelhada se arrastava para a escuridão da galeria que, naquele ponto, fazia uma curva para a esquerda, o que impediu que eu conseguisse identificar o que era. No entanto, um fio de suor escorreu pela minha espinha dorsal. Senti a friagem que corria na galeria aumentar ainda mais.

Mas não pude gastar muito tempo com essas sensações porque Manoel (esse era o nome do meu chefe) já puxava meu braço outra vez e apontava para o chão, sem emitir qualquer som. Ele só mostrava nojo e horror em sua cara, que tinha adquirido uma coloração verde. De repente, ele se dobrou em dois e vomitou em cima das minhas botas.

Eu ia encher ele de desaforos, mas quando vi o que ele apontava mudei de ideia. A reação estomacal dele era compreensível. Lá, naquele pedaço de chão da galeria, mal e mal iluminado pela minha lanterna, estava um corpo. Não um corpo apenas, como se costuma ver os corpos dos mortos, mas um corpo feminino, com as vestes transformadas em tiras e com o rosto semidevorado pendendo em nossa direção. Um olho desaparecido e o outro pendurado pelos nervos ópticos. 

Mareei também, claro. Mas numa outra vida, que eu escolhi descartar como uma roupa velha, eu já tinha visto coisa pior. Por isso, apesar da azia, consegui me controlar e me aproximei do corpo da mulher, com os olhos baixos. Parei perto de seus pés e me agachei. Respirei fundo e encarei seu rosto semidescarnado que, a luz da lanterna, ficava ainda mais tétrico. Havia algo nele que não me era desconhecido.

Encontrei uma pasta ao lado dos restos mortais. Abri o objeto. Encontrei alguns papéis com o famoso ‘juridiques’ e que coloquei de volta no lugar. Encontrei a carteira e lá estava o cartão de identidade da Ordem dos Advogados do Brasil, com o nome da moça. Tinha sua foto também. De fato, eu a conhecida de vista, era aquela guria que tinha, como eu, pressentido o perigo de escavar o solo de Rio Grande. 

Fiquei tão tonto que tive que sentar um pouco.

Eu não a conhecia, não sabia nada sobre sua pessoa, sua família, sua profissão. Eu não sabia nada de nada. Mas tínhamos criado um vínculo naquele dia. A morte dela era em parte culpa minha, porque tínhamos nos tornado irmãos diante de um infortúnio anunciado, que somente nós havíamos percebido, mas que não fizemos nada para impedir. 

Será que ela também acreditava que a cidade gris deveria ser fervida para expirar seus pecados?

Diante da minha reação, meu chefe perguntou se eu conhecia a mulher dilacerada. Disse que apenas de vista, que ela morava naquele bairro. Então, tentei me recompor e disse para chamarmos as autoridades porque aquilo não poderia ser resolvido por nós. Manoel argumentou que eu não fosse tão precipitado, que seria melhor darmos mais uma olhada por ali, para tentar descobrir o que era aquela coisa que tínhamos visto, senão iam dizer que estávamos loucos. 

A contragosto tive que concordar e começamos a caminhar, dessa vez com um pouco mais de rapidez (eu já estava começando a implorar para sair daquele buraco maldito) na mesma direção que havíamos visto a sombra avermelhada fugir. Alcançamos a curva e a vencemos sem nem olhar por onde íamos, tropeçando em alguns pedregulhos e quase caindo. Acabei batendo o ombro e o braço esquerdos contra uma das paredes úmidas. Devido a pressa o choque foi um tanto violento, a ponto de lacerar a pele e fazer com que gotas do meu sangue se misturasse com a água que vertia daquelas paredes centenárias.

Percorremos alguns metros mais e descobrimos outra curva. Meu braço começava a latejar e eu já estava cansado daquele passeio sem sentido. Ia falar para meu chefe para voltarmos antes que nos perdêssemos naquele labirinto quando percebemos no fundo da galeria algo se deslocando devagar em direção a uma pequena fonte de iluminação que saía de uma abertura no fim daquele corredor. Ouvimos um som rítmico, como se um grupo de insetos estivessem zumbindo uns para os outros. 

Estranhamente eu e Manoel sentimos o mesmo impulso e demos as mãos, como duas crianças prestes a entrar no quarto mais assustador da casa em que moram. Caminhamos assim até a abertura que vimos, tentando não fazer barulho. 

Quando chegamos perto do que parecia uma entrada, colamos nossos corpos na parede. Ficamos ouvindo com a respiração presa, para tentar identificar qualquer movimento que nos desse uma ideia do que se escondia naquele lugar. Ouvimos algo parecido com passos pisoteando alguma coisa sólida, mas quebradiça, que ia estalando quando era pressionado por aquilo que talvez fossem os pés das coisas ocultas na semi-escuridão. 

Não era um som agradável de ouvir.

Enfiei a cabeça na abertura e vi sombras se movendo vagarosamente pelos cantos. Naquela área havia uma espécie de mureta que circulava o recinto. Ela estava parcialmente ruída em alguns pontos. Serviria muito bem para nos ocultar. Mostrei para Manoel. Ele balançou a cabeça em negativa. Não queria prosseguir. Sacudi os ombros e deslizei até a proteção. Eu precisava saber o que tinha ali. Quando eu me preparava para dar uma olhada, senti algo frio tocar meu ombro.

Quase gritei, mas era apenas meu chefe. Não conseguiu ficar sozinho no escuro. Sua mão estava tão gelada quanto à de uma pessoa morta. Tive vontade de socar a cara dele para aprender a ser homem. No entanto, algo me chamou a atenção e resolvi deixar os socos para depois. Uma luminosidade vinha de um nível um pouco mais baixo do que o da mureta, fazendo as sombras de pelo menos três criaturas, que andavam nesse nível inferior, se alongarem pelas paredes.

Reuni coragem e olhei por cima da proteção. 
Escancarei os olhos e a boca. Como explicar o que eu via? 

Meu chefe puxou meu braço algumas vezes, querendo saber o que tinha ali. Nada falei. Então ele começou a me perguntar o que eu estava vendo, como eu não respondia começou a levantar a voz. Tapei sua boca e o puxei pelo colarinho. Ele que visse com seus próprios olhos. Ele congelou mais do que eu. 

Era inacreditável a visão. Ninguém que não estivesse ali poderia compreender de fato o que víamos. Ninguém iria acreditar na gente se tentássemos explicar o que era aquele poço, o que ele continha.

Diante de nós, em torno de uma fogueira que eu não tinha ideia de como era mantida, um fino tapete de ossos recobria o chão. Ossos de gente, ossos de animais, talvez ossos dos ancestrais daquelas coisas que rondavam por ali, ciciando baixinho, como costumam fazer roedores ou insetos. Eles deslizavam devagar sobre os esqueletos, produzindo os estalos que tínhamos ouvido quando os ossos quebravam sob seus pés.

No meio daquela tumba cinco ou seis criaturas bizarras, caminhando ou roendo algum dos ossos aparentemente mais frescos, que ainda continham algum tutano ou nacos de carne envelhecida. Suas peles eram levemente translúcidas e de um tom vermelho esmaecido, por onde se viam as veias e artérias. Tinham o corpo esquálido e tronco encurvado de onde se projetavam suas cabeças, largas no crânio e finas na região dos maxilares. 

Suas carrancas não tinham expressão. Dois olhos enormes e esbranquiçados saltavam delas, olhos que lembravam coisas que ficaram muito tempo no fundo do mar. Deviam ser cegos. Das suas bocas brotavam dois dentes fortes, encurvados e muito afiados. Seus braços eram desproporcionais em relação ao tronco, terminando em mãos com três dedos, com unhas que pareciam garras. Certamente eram mortais. As pernas eram levemente curtas, o que poderia indicar que aqueles bichos não se locomoviam com rapidez.

Um som num dos cantos do poço me chamou a atenção e olhei na direção de onde ele veio. Vi três miniaturas das aberrações surgirem das sombras, devagar, apoiando-se nos braços compridos. Pararam perto de um indivíduo mais velho. Este segurou um dos pequenos e alisou sua cabeça com as garras. Não acreditei. 

Será que aquelas coisas ainda podiam se reproduzir?

Meu chefe levou à mão a boca, tentando evitar qualquer barulho, mas não foi possível. Da sua garganta jorrou novamente vômito esverdeado, onde se viam restos da sua refeição noturna e algumas outras coisas que não pude identificar. Ele tossiu e cuspiu para se livrar do mau gosto e do resto de bile, deixando seu corpo escorregar pela parede da mureta.

Erro fatal.

As criaturas ouviram o barulho e viraram suas cabeças para cima, farejando o ar e soltando zumbidos e assovios guturais. Começaram a se movimentar, com passadas curtas mas rápidas até que passaram a saltar nas pedras expostas da parede do poço e a escalarem a mesma com uma agilidade que eu tinha achado que não possuíam. 

Simplesmente catei meu chefe pelo colarinho que, a princípio se deixou arrastar pelo chão umedecido, mas se ergueu rapidamente quando viu a primeira cabeça daquelas aberrações surgir sobre a mureta. 

Nós corríamos como loucos, mas as pernas curtas eram mais velozes que as nossas. Por duas vezes senti o vento das garras de uma delas zunir perto de mim: uma perto da minha nuca e outra perto do meu braco machucado. Na terceira vez, uma unha me causou um arranhão e meu sangue começou a escorrer embora não fosse um corte muito profundo. 

O cheiro de sangue deixou os bichos mais excitados e eles começaram a ciciar mais alto e mais frequentemente; por causa disso, enquanto corriam atrás de nossos calcanhares, se batiam e atropelavam tentando nos alcançar. Foi essa excitação que nos deu uma pequena vantagem e permitiu que conseguíssemos nos distanciar um pouco daqueles monstros vermelhos.

Mas era certo: eles iriam nos alcançar antes de chegarmos ao buraco.

No entanto, algo mudou repentinamente nosso destino. Ouvimos um enorme zumbido provindo do poço, creio, que tínhamos deixado pra trás. Isso fez as criaturas pararem de nos perseguir tão bruscamente que duas se chocaram e vieram dar aos nossos pés. Quando se desvencilharam de si mesmas nem se preocuparam conosco. Ficaram ouvindo as outras aberrações. Em segundos todas deram meia volta e saíram em disparada refazendo o percurso em sentido contrario, emitindo zunidos desesperados.

Tenho certeza que algo tinha acontecido com as crias e agora os bichos estavam desesperados por elas. Não se importavam em deixar duas fartas refeições escaparem, desde que seus monstrinhos estivessem bem. Ficamos momentaneamente paralisados, entre aliviados e aterrorizados, vendo aqueles brutos desaparecerem na escuridão da galeria.

Em seguida, voltamos a correr em direção a saída daquele inferno, que nunca havíamos suspeitado que existisse sob a cidade do Rio Grande. Aliás, nenhum citadino suspeitava. E isso era o mais apavorante. Eu me perguntava se alguém algum dia descobriu o que havia ali. Desejava acreditar que não, mas lembrei das lendas mencionadas pelo Zé.

Era certo que alguma pessoa sabia de tudo, mas haviam conseguido fazer com que a verdade fosse soterrada não apenas pela terra riograndina, mas por toneladas de coisas desimportantes que enchiam as notícias que eram contadas nos meios de comunicação da cidade gris.

Somente loucos e bêbados conseguiam ver os rastros da monstruosidade que a cidade abrigava. E quem acreditaria neles? Quem acreditaria na existência dos monstros que eu e meu chefe havíamos visto?

Enquanto corríamos para a boca do buraco, eu sentia que meu braço e o local em que fora arranhado latejavam cada vez mais. Já sentia o inchaço tomando conta dos locais. Meu sangue parecia meio acelerado e eu sentia frio e calor, calor e frio. Mas estou mais preocupado em sair dessa galeria do que com o que estou sentindo.

Quando dobramos na primeira curva do túnel acabei tropeçando em algo. Era a pasta da guria que eu conhecia, a advogada. Cai estatelado no chão justamente sobre o braco que latejava. Vi estrelinhas diante dos olhos porque a dor que senti foi muito maior do que a que se espera para um simples arranhão. O pateta do meu chefe continuou correndo enquanto eu tentava lidar com a dor que sentia e desvencilhar meu pé da alça da pasta.

Quando consegui só vi os pés do meu chefe sumindo nos primeiros degraus da escada que nos levou àquela escuridão mortal. Procurei me levantar rápido, embora não ouvisse nada que indicasse que as aberrações estavam voltando a nos caçar. Eu só queria sair o mais rápido possível dos subterrâneos desconhecidos de Rio Grande.

Quando apoiei meu corpo sobre os joelhos para me levantar, senti uma ânsia de vômito incontrolável. Vomitei e fiquei ainda mais tonto. Acabei apoiando uma das mãos no chão, para me recuperar, e a outra... a outra encontrou um tecido que revestia algo mole e pegajoso. Era a perna da menina que havia sido morta por um dos monstros.

Tentei afastar a mão rapidamente, mas não deu tempo. Uma outra mão, ensanguentada e mutilada segurou meu pulso. Eu olhei... e quando olhei vi o rosto da moca perto do meu, com seu único olho pendurado já esbranquiçado e o que restou da sua pele adquirindo o tom avermelhado da besta que a comeu parcialmente. 

Um arquejo de morte saiu de seu peito dilacerado e então eu ouvi, Deus, eu juro que ela disse: 

- Nois morri. Nois vevi. Nos volta... sempre.

Gritei como um bebê e me soltei daquela mão maldita. 

Ela ainda tentou me pegar mais uma vez, mas não conseguiu. Talvez seu tronco estivesse muito prejudicado. Me levantei e sai correndo, aos tropeções, por causa do mal estar que sentia e do terror que se abateu sobre mi  quando aquela coisa viva/morta falou.

Cheguei a escada e subi o mais ligeiro que minha pernas bambas permitiram. Mal deu tempo de sair do buraco. O besta do meu chefe ja tinha mandado derramar um caminhão de terra sobre ele sem nem se dar ao trablho de verificar se eu tinha conseguido sair da galeria.

Ele apenas disse:

- Era uma decisão urgente. Não podia deixar aquelas coisas saírem.

Olhei para  ele enfurecido. E sem mais delongas desfechei um soco na sua cara.

- Tu sabia de tudo, né? Tu e teus chefes. – Eu senti que esta era a verdade, porque já tinha visto algo parecido em outra época, embora sem os monstros. - Eu ainda tava vivo cara. Tu ia me soterrar com aquelas coisas e eu ainda tava vivo!

Ele somente baixou os olhos. Virei às costas e fui embora. Ali não era mais meu lugar.

Com certeza eu deveria ter ido para o hospital. Mas acabei em casa, todo dolorido, com febre e querendo desesperadamente um banho. Eu tinha material médico em casa suficiente para tratar os machucados. Também comecei a arrumar uma mala com minhas roupas. Amanhã vou deixar Rio Grande. E espero que para sempre.

Pego uma toalha, deixando o resto dos preparativos para depois, porque, sinceramente, preciso dormir. Se não fizer isso acho que morrerei de estafa. Vou tirando a roupa devagar porque tudo está doendo, meus braços, principalmente o que machuquei diversas vezes na noite de hoje, e as pernas. A cabeça lateja sem parar e o arranhão nas costas coça e parece que começou a expelir algo meio gosmento.

Quando tiro a camisa percebo o inchaço do braço, que também está purulento. Dou uma olhada nas costas, pelo espelho, e vejo a vermelhidão se espalhando, deixando as veias visíveis como um pequeno mapa. O mesmo líquido que sai do braço também está escorrendo do ferimento.

Enfim, tomo o banho que preciso e me dirijo para a cama. Estou com tanto sono que mal consigo manter os olhos abertos. Olho o relógio. São 22h e, no entanto, parece que vários dias tinham passado. “Talvez tenham”, penso, “quem sabe naquelas galerias as coisas sejam diferentes”. 

Então, fecho os olhos. 

Apago.

Acordo mareado. A claridade da lâmpada que esqueci acessa fere meus olhos. Protejo eles com a mão, apesar da visão embaçada, noto que ela está meio diferente, os dedos parecem estar se unindo. Deixo isso de lado e rumo cambaleando até o interruptor; vou apagando as luzes pelo caminho até chegar à cozinha. O relógio da parede marca 1h da madrugada. Meu corpo ferve. Quando toco meu rosto percebo que os olhos estão com uma protuberância esquisita.

Vou tropeçando até o banheiro com um medo enorme, apesar de já saber o que está ocorrendo. Eu nunca fui de tentar fugir da verdade. E lá está ela, diante de mim, no reflexo do espelho, tão terrível quanto as criaturas que vi nas galerias.

Refaço o caminho de volta. Vejo a mala que estava preparando. Não vai servir de nada agora. Pego uma calça qualquer dentro dela e a visto com dificuldade, mas a peça escorrega, a diferença entre minha cintura e meu tronco já está bem acentuada. Pego um cinto e enfio de qualquer jeito, conseguindo manter a calça no lugar.

“O que faço? O que faço? O que faço?”, é só o que consigo pensar. 

Tento vestir uma camisa, mas ela não entra no meu tronco.

Chorando abro a boca.

-Drlfagasssss.- E a voz começa a sumir terminando num zumbido. Levo as mãos aos lábios. Só tenho agora meus pensamentos. Mas, por quanto tempo? Quanto tempo ainda tenho?

“Pense rápido, seu idiota? O que tens que fazer? Vamos, tu ainda é um cara inteligente. O que tu DEVE fazer?”

Acabo lembrando de que existe outra elevatória de esgoto que está sendo construída na cidade. Não penso duas vezes. Apesar do calor, pego um capote grande no armário, que uso no serviço, quer dizer, usava, agora não ia mais precisar dele. Me visto e saio em disparada pela porta.

Quase já não sinto mais o mal estar. Tenho que chegar na obra antes que tudo mude irreversivelmente.

A mutação está quase completa.

*****************

Em algum ponto do centro de Rio Grande:

-Vamos com isso gente, precisamos terminar esse buraco hoje.

Os peões trocaram olhares zombeteiros entre si. O encarregado fingia mandar e eles fingiam obedecer.

Contudo, naquele dia conseguiram terminar de esburacar a rua para que mais um elevado do esgoto fosse construído na cidade gris que agora tinha um céu esquisitamente avermelhado, tanto pela manhã, quanto ao entardecer. Os peões jogaram suas ferramentas no caminhão, subiram para a boleia e se foram felizes por terem acabado pelo menos a escavação. Um vigia ficou no trailer de madeira para cuidar das coisas, mas como de hábito acabou dormindo.

O homem gordo e com olheiras profundas acordou sobressaltado pelo som de algo metálico batendo contra pedras. Levantou-se com dificuldade e ficou escutando. O barulho vinha do buraco da obra. Pegou uma lanterna. As pilhas já estavam fracas, mas deveriam servir para a breve verificação que ele faria. Não queria correr o risco de dar de cara com nenhum crackeiro.

Dirigiu-se ao local e apontou a luz fraca da lanterna para o buraco. Viu um vulto meio torto que batia com uma picareta numa espécie de piso de tijolos que tinha encontrado depois de escavar um pouco mais a areia do local. 

-Hein, cara? O que tu tá fazendo aí? – perguntou tentando manter uma voz grossa de autoridade. – Quero que tu saia daí agora. Podes te machucar.

Mas o vulto encapotado não se virou, nem respondeu. Continuou fazendo o que estava fazendo, sem se importar com suas ordens. O vigia bufou. Resignado começou a descer pelo buraco.

Foi quando ouviu o barulho. O vulto estranho deu dois passos para trás, enquanto uma cratera no chão se abria. O vigia se assustou e escorregou até o fundo da escavação. Mesmo assim, aquela coisa escura não se virou. Ele se levantou sacudindo a areia das pernas da calça do uniforme e se aproximou, agressivo, do encapotado.

-Eu não disse que tu tinha que sair do buraco? Olha o que tu fez! – disse segurando o braço do vulto e virando ele em sua direção.

Foi quando viu a cara da criatura e se horrorizou. Abriu a boca para gritar.

Mas não teve tempo, o monstro mordeu sua face e, agarrando-se ao corpo do vigia gordo, puxou-o consigo para as profundezas da cratera que tinha aberto. A criatura começou a arrastá-lo pelo chão do que parecia uma galeria subterrânea, enquanto uma caçamba de areia começava a ser derramada sobre o buraco. O vigia não sabia explicar como a aberração tinha feito aquilo, mas o fato era que ele estava irremediavelmente preso naquela escuridão.

No entanto, não seria por muito tempo. A criatura o soltou, mas quando achou que ela lhe deixaria em paz, a monstruosidade pulou sobre seu corpo e começou a devorar uma parte do seu braço.

Ele só podia gritar. Mas sabia que ninguém iria ouvi-lo. Era tarde demais, já devia estar amanhecendo em Rio Grande. Seus moradores iriam passar por aquele buraco e nunca iriam imaginar o que estava acontecendo debaixo dele.

Depois de se refestelar com o corpo do vigia, o monstro resolveu explorar sua nova habitação. Não sabia quando iria se alimentar novamente. Mas, o mais importante é que estava vivo. 

Sempre estaria, porque com seu parco raciocínio ele compreendia que nem mesmo monstros desejam morrer. 

Eles lutarão bravamente por suas vidas infectadas e infelizes.