Hidroviária. Dia cinzento. Laguna
estranhamente calma. Cheiro esquisito, nem bom, nem ruim: mormacento.
Ao longe, pessoas flutuam
deslizando pela água transubstanciada. Vão de remo em remo, vela ou ronco
diesificado.
Uma Suzuki paira sobre a água.
Cento e cinquenta pulsações de um coração mecânico, momentaneamente silencioso.
O desejo de voar reduzido ao estoque de energia que ela consegue acumular em
seu estômago de aço.
Asas de duas cores balançam
deslocando o ar. Elas rodeiam lascas de piscinios que mal conseguem alcançar na
rasante descida entre as correntes de água e vento.
Subo na prancha. Vai começar a
travessia: indo para acabar voltando. Do outro lado, pouco mais que areia de
praia e uns quadrados que parecem sobrepor-se a água do canal. São trinta
minutos para desbravar as ondulações traiçoeiras.
Mas no meio do caminho, o céu
torna-se obtuso, assume um tom de chumbo trovoante. Entre os dois braços
turbulam murmuromarinhos. Ao fundo, escorregando vagarosamente, monstros de aço
rangem seus anteparos ou reparos. Avista-se um cemitério de naufragados
corroídos pelo salino.
Ainda se vê um roncador deslizando
pela laguna, transportando sabe-se lá que sementes ou malefícios.
Por fim, a nebulosa cerrania
despenca em fios sobre os passadeiros viajantinos, que apenas queriam fazer a
travessia sem rumores ou assustantes ventanias.
O motor da mísera chata ronca,
pulando levemente coriscas ondas, e um cruento suspiro lambe os cabelos
navegantes.
Vai surgindo adiante uma distorcida
concretude, formando coisas, andaimes, pinos, olhos de espera: são os
pousadouros dos citadinos.
Balança com dificuldade a nau
transvazante para chegar ao seu destino. Restam poucos minutos para abalroarmos
nos pedregulhos do aportador da vila. Desponta a poucos nós o vulto de um
mínimo casario.
Enfim, chego ao lugar esquecido,
mas agora quase vivo, do outro lado de uma laguna que bem poderia ser mar, se
já não fosse quase rio. Irei transitar por grãos de areia até acabar minha
vespertina faina deste dia.
Depois eu apenas vou voltar numa
outra morracenta saltadora de ondas. Serão mais trinta minutos e qualquer sonho
acalentado encontrará o seu final no mesmo ponto de partida.
*Só faltou a foto... e a companhia de Lewis Carroll.