Precisava colocar em algum lugar o que estava pensando. Não conseguia encontrar o recipiente correto e isso estava aumentando, não só a urgência de se livrar daquilo que gritava em sua mente e parecia ecoar no ar, mas também a necessidade de vomitar.
Era estranho isso: sentir o vômito na garganta toda vez que queria gritar alguma coisa e não conseguia. Entendia, ou ao menos tinha a percepção, de que quase ninguém sofria desse mal.
Como explicar isso? Simplesmente parecia que, se não gritasse, iria involuntaria e incontinentemente expelir uma gosma com tudo que estava pesando no estômago e no cérebro.
As pessoas costumam sentir diferente e talvez fosse essa a forma que tinha de sentir bem ou mal estares.
No momento era uma mistura das duas sensações: era bem estar porque finalmente algo de sentimentalidade ainda existia no seu interior. E era um mal estar por não saber mais como sentir isso.
O cérebro captava o sol na rua e sentia que iria trabalhar melhor. O coração via o sol e ficava pensando na possibilidade de que ele seria novamente arranhado até o fim do verão.
Admitia: uma paixonite meio adolescente contribuía para isso, o que não causava em si um sentimento elevação de sua auto-estima. Ao contrário, percebia que isso bem poderia resultar em algum transtorno presente ou futuro.
Além disso, tinha toda uma gama de responsabilidades que tinha que cuidar, portanto, devia deixar de lado os devaneios quase românticos que as vezes assaltavam seu corpo adulto e davam um pouco de conforto para seus dias mornos, por vezes, insuportavelmente tomados pela monotonia.
No entanto, bem sabia, que todo mundo precisa de um pouco de sal ou doçura em seu dia a dia, mesmo que não seja dado a ilusões ou que tenha plena consciência de que não passa apenas disto.
Enquanto isso, vivia interagindo com uma gama de livros que ajudavam, seja a matar o tédio, seja a matar sua pessoa do mesmo mal. Eram livros pesados, com centenas de folhas, discorrendo sobre possíveis soluções para problemas alheios, ou contribuindo para transtornar qualquer forma de solução.
Sabia que, às vezes, o que era tido como a resolução perfeita para as coisas se transmutava justamente na imperfeita forma de agravar o problema.
Isso irritava sua mente, com toda certeza, que não era dada a contemplações diante do que era aparentemente injusto. No entanto, vinha tentando domar seu conceito próprio ao pensamento público e notório de que o que para si era quase uma violação de direitos, bem poderia significar para uma parcela grande da população algo perfeitamente natural.
As contraditórias sensações bem estar mal estar digladiavam em seu interior. Nenhuma delas recuava, por isso seguia nesse vai não vai de alegria e tristeza conjugadas, mas sempre teve consciência de que isso já era costumeiro em sua vida desde sempre. Assim, persistia em carregar as duas bem aventuranças desaventuradas com certa tranquilidade, pois se sabia dúplice desde que se descobrira gente na cidade gris.
A descoberta dessa estranha duplicidade (quase um caso Dr. Jeckil, Mr. Hyde) ocorreu aos cinco anos de idade quando percebeu que seus bonecos de brinquedo não eram totalmente do seu agrado.
Escalpelou alguns, queimou outros, condenou ao ostracismo os restante, mantendo-os longe de si, mas perto o suficiente para, eventualmente acarinhá-los ou torturá-los.
Se a destruição ou tortura psicológica de brinquedos estivesse entre os aspectos que definem um possível psicopata, certamente acabaria por se enquadrar nesta patologia psiquiátrica. No entanto, parece que isso ainda não entrara para tal rol, por isso entendia que nada havia de errado com sua psique.
A não ser o fato de querer guardar seus pensamento e sentimentos em recipientes ou sentir vontade de vomitá-los quando percebia um deles se insinuando em sua mente ou corpo.
Na realidade, talvez essa mistura esquisita deveria fazer parte da tríade da sociopatia.
Afinal, ser dúplice pode ser considerado normal? Ou o normal é ser dúplice?