sábado, 13 de julho de 2013

TRATADO DE NECROFAGIA

Esse corpo
Esse corpo sobre a mesa de necropsia
Esse corpo amorfo
repleto de formol
há muito já não é do cadáver
mas também não é teu

Mesmo assim
   tu o cortas
   tu o saqueias
   tu o dissecas
   tu o partes
para completar teu treinamento
embora nem sempre
acabes salvando o corpo dos vivos
que te buscam no posto ou no hospital

Esse corpo que tão calmamente cortas
e de onde escoa
          [se é que ainda escoa]
um sangue coagulado
esse corpo um dia
     já foi gente
     já sentiu
     já amou ou odiou
     já viveu
Agora está morto mas
           não é teu
           nem meu
           nem dele

É de ninguém
pois quem quer o cadáver abjeto do indigente
que perambulava pelas ruas
    [bêbado ou drogado ou apenas enlouquecido]?
Perambulava
e se vivia era porque respirava
Somente isso

Já estava morto há muito
Já fedia e repugnava
Já sofria a decomposição da morte em vida
porque não era mais reconhecido

Esse corpo sobre a mesa de necropsia
só é útil para o microscópio
pobre defunto perdido
Já era anônimo
E depois da utilidade prosaica para teu bisturi
cairá numa cova rasa onde até o tempo o esquecerá.

2 comentários:

  1. Eu até tentei dizer alguma coisa, mas fiquei calada, quase um silêncio cadavérico, não fosse minha respiração ofegante...
    Lilian

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Senti-me elogiada com teu silêncio expectante, Lilian.
      Obrigada por comentar.
      Abraços.

      Excluir