“Oi mãe, eu ainda to aqui dormindo
enquanto a senhora me olha aí de cima como se eu fosse um preguiçoso. Mas é bom
te ver aqui.
Sabe como é, é a dose do químico
diário. Mais uma vez ela ta mudando tudo. Foi preciso. Mas aí o sono me pega
por uns dias e eu fico imprestável.
Ok, mãe tens razão. Tais aí me
olhando como eu fosse uma mula empacada, com uma vida empacada, como
sempre foi desde que tu me pariu. Desculpa, desde que a senhora me deu a luz.
Eu sei que a senhora é daquelas ‘respeito é bom e eu gosto’ e dessas palavras
que falam de eventos naturais, embora sangrentos, como se fossem poesia, etc e
tal. Então, assim sou desde que nasci. Empacado, lento, devagar, mesmo antes do
químico me conhecer e fazer parte dessa minha vida de luz e sombra, mais sombra
porque, apesar do teu desgosto, eu preciso muito dormir.
Sim, mãe é porque eu continuo tendo
aquelas visões. Mas já melhorou bastante. Não eu nunca sonhei que estava
matando a senhora. Eu estava matando ‘ELA’, a Lâmia, aquele bicho da Grécia...
Sim eu sei que é apenas uma
história, mas as vezes, só as vezes... Tudo bem a senhora não gosta disso.
Vou parar de falar nela.
Sim, eu sei que ela não existe e que é ridículo um
homem da minha idade achar que ela vai me matar.
To curtindo tua visita, sabe? Tava
com saudade, embora a senhora não fale muito, ou eu não possa escutar tua voz
meio esganiçada muito bem porque mais uma vez estou entorpecido para ajustar a
dose diária ao meu ciclo natural. Mas é bom te ver firme e forte véia, mais do
que eu na verdade, como sempre.
Como? Eu disse ‘véia’? Não não quis
dizer que a senhora aos 65 anos é uma velha é só uma gíria sabe? Ah! Esqueci o
‘respeito...’ e que a senhora nunca gostou de gírias. Tudo bem! Mas não precisa
bater na minha boca, já passei dessa fase.
Ok,ok, desculpa, os pais têm o
eterno direito de repreender e educar o filhos, mesmo que eles já tenham 30
anos. Desculpa, aí, não vou repetir.
Posso voltar a dormir agora? Não?
Ok.
Mas tudo isso é culpa desse sono maldito
e dessa dose que ontem tomei e hoje irei repetir. Quem sabe a amanhã eu já vou
estar bem e aí quando a senhora chegar poderemos conversar melhor.
Não? A senhora não poderá vir
amanhã? Nem depois de amanhã? Talvez só no mês que vem? Ok, fazer o que. Eu
entendo é difícil, diferente de mim a senhora tem responsabilidades e afazeres,
etc. e tal.
E por falar nisso, como está o
Jorge e a Lica e o tio Sam? Sim eu sei, mãe, todos são uns vagabundos,
imprestáveis, nenhum deu certo na vida. Somente a senhora conseguiu tudo,
afinal fez tantos sacrifícios...
Não, não estou debochando eu
concordo com a senhora. Olha só é só o químico que me dá essa cara de sono
misturada com um tipo de riso maníaco que minha boca mole deixa meio torto e
escondido.
Tudo bem, tudo bem. Eu sei que a
senhora entende, que não é burra. Ok. Vamos mudar de assunto.
O que? Já passou uma hora desde que
a senhora chegou ao meu quarto? Como é que eu nem vi o relógio passar? Porque eu fiquei dormindo, babando
e acordando a maior parte do tempo?
A senhora está enganada apenas fechei os
olhos para descansar a vista e ouvir melhor o que a senhora tinha pra contar.
É pra repetir o que a senhora disse?
Porque tá achando que eu não escutei? A senhora acha que eu sou surdo? Pateta?
Desligado? Não sou não a senhora que sempre acha que eu não ligo pra nada.
Não eu não estou gritando, a
senhora que sempre foi muito sensível quando a gente falava um pouco mais alto. Não não estou dizendo que a senhora
é mentirosa e muito menos manipuladora. Eu só... Ok, ok, mas não precisa me
bater. Droga.
Tá bem não vou mais dizer nenhuma
palavra que a senhora não goste. Mas a senhora precisa entender que a mudança
química as vezes faz isso. Ta bom, eu sei que isso não é desculpa. Tudo bem, a
senhora tem razão, como sempre.
Não mãe realmente não estou sendo
condescendente. Não é possível agir assim com a senhora.
Ok, o tempo terminou. Me avisa
quando a senhora vem? Por favor? Assim vou ver se consigo ficar melhor quando a
senhora me visitar pelo menos. Sim, vou me esforçar pra fazer algo útil.
Realmente. Sim eu sei se eu não levasse um vida tão inútil eu não estaria aqui.
Um beijo? Ah, sim, desculpa me
esqueci que a senhora não gosta dessas frescuras.
Tchau”.
Ela fechou a porta do quarto e
falou com duas jovens no corredor.
“Sim, nós ouvimos os gritos.
Horrível, não? Sim, entendemos perfeitamente sua situação. Realmente deve ser
aflitivo ver seu filho acabar assim. Naturalmente que a culpa não é da senhora.
Ah! A senhora sempre soube que não? Que bom que a senhora não sente culpa”. Uma
delas finalizou olhando de esguelha para a colega e contendo um pequeno
sorriso, seja de ironia seja de assentimento.
Depois disso ela saiu em direção a
porta e ao sol. Cruzou o portão e parou um instante olhando para os dois lados
para decidir por onde iria voltar para sua casa no centro de Rio Grande.
“Não é fácil ter um filho assim. Eu
não fiz nada pra receber esse castigo”, pensou enquanto começava o trajeto em
seu passo de atleta.
Ao fundo se via a frente do prédio
onde seu filho, Carlos, vivia a maior parte da sua vida, entre uma dose e outra
de químicos.
O letreiro dizia:
Hospital Psiquiátrico
A. C. Santa
Casa de Misericórdia
Do Rio Grande
Adriande,
ResponderExcluirminha amiga, não tenho mais nem o que dizer dos seus escritos e este aqui sinceramente é de deixar a gente de boca aberta com seu talento. Na verdade não li, devorei o texto de tão boa que foi a leitura, mas as emoções se debatiam diante desta, ao mesmo tempo que sorri com o infeliz sufocado, das respostas que todos gostaríamos de dar, me sufoquei com ele e empatizei com suas questões ... é esse mundo íntimo nosso que devemos cuidar .... olhemos e pensemos, sintamos e compreendamos a nós mesmos e que possamos não nos deixar nos subjugar se isso for possível claro! .... hehehehe, beijinhos minha linda ... amei!