TRECHO
I*
Br 392. Sol achatando a
paisagem. Nada se movimenta no trevo de entrada para a cidade de Pelotas.
Apenas os carros e caminhões passam voando, como vacas apressadas, tocadas pelo
peão, para tentarem alcançar alguma fonte de água antes que um calor incomum as
matem.
Os veículos querem chegar a
Rio Grande o mais rápido que seus motores permitem, levantando uma poeirama que
entra pelos olhos, boca, ouvidos roupas e qualquer lugar onde o corpo possa
acomodá-la. Os condutores não suportam mais a quentura dentro dos automóveis.
Andres está sentado embaixo
da ponte interditada que cruza o Canal São Gonçalo. Uma gota de suor, gosmenta
e desconfortável, escorre pelas suas costas. Ele tenta afastar as moscas que o
incomodam, sem sucesso. Depois de alguns dias de caminhada, já que não queria
gastar dinheiro com a passagem, ele está quase chegando a nova terra de
oportunidades do RS. Antes havia sido Porto Alegre, agora era essa cidade no
extremo sul do estado, que havia ficado esquecida por Deus por um grande tempo.
Ele está sentado à sombra da
ponte, perto de uns arvoredos que têm por ali e de um pequeno braço de água
regado pelo Canal São Gonçalo. Alguns pescadores ainda saem de barco por este córrego
para tentar pescar alguma coisa no rio, mas está cada vez mais difícil. Tudo
está poluído.
Mais adiante ele vê uma
série de casebres construídos por catadores de lixo. São feios, desengonçados e
se mantêm parcamente em pé. Um vento mais forte bem poderia derrubá-los, mas
estranhamente não derruba, embora, as vezes, o rio, na enchente, os inunde.
Os pátios dos barracos estão
atulhados da porcaria jogada fora por aqueles moradores mais abastados da
cidade considerada a 'Princesa do Sul'. Alguns anos antes o governo municipal
havia retirado os catadores do lugar, debaixo de muito choro e sofrimento. Mas
eles voltaram.
Eles sempre voltam.
Andres continua sentado,
tentando escapar do sol causticante do meio dia de uma sexta-feira qualquer. Só
pensa em alcançar Rio Grande. Acredita que ali conseguirá um emprego. Dizem que
a cidade está precisando de bons pedreiros, marceneiros, carpinteiros e até
empregados domésticos, já que, com o polo naval, ninguém mais quer essas vagas.
Ele carrega uma mochila com
duas peças de roupa, um par de sapatos um pouco mais novos do que os que estão
em seus pés sujos e, escondido nas cuecas, certa quantia em dinheiro (envolta
por uma sacola plástica, que a bem da verdade, por causa do calor, está lhe
incomodando muito), que ele juntou para poder passar os primeiros dias na cidade
até ver se consegue um bico.
“Talvez o primo João me
ajude a achar algum biscate. Pelo menos ele prometeu, embora não tenha
oferecido pouso. Mas pra isso deve ter algum albergue no Rio Grande”, ele
pensa.
Será?
Andres toma um gole de água
e come mais um pedaço da recheada que comprou num bar duvidoso num boteco na
entrada de Pelotas. Ele espera que nada esteja estragado porque a aparência do
lugar não era das melhores. Passa a mão na testa, novamente, para secar o suor
que se alojou ali e o está incomodando. Fecha os olhos e decide dormir com a
cabeça apoiada na mochila até o calor diminuir um pouco, aproveitando uma grande
moita para se proteger de alguém mal intencionado. Ninguém o enxergaria da
rodovia ou da estrada de terra que passava perto do local onde se sentara.
Precisava descansar, mesmo sabendo que ele tinha optado pela andança para
chegar ao seu destino.
“Senão não chego onde
pretendo”, ele raciocina de forma prática, afinal já caminhou um tantão somente
hoje. E ele sabe bem o que quer. Agora que falta pouco ele não vai arriscar não
chegar à cidade vizinha.
Andres tem 30 anos. Não é
muito alto. Tem cabelos castanhos escuros e olhos da mesma cor. Seu físico é
normal, embora ele seja bem resistente porque sempre trabalhou em serviços
pesados. Nos três últimos dias ele se tornou um andarilho na tentativa de
alcançar uma melhor oportunidade, arranjar um bico qualquer nem que seja
somente temporário, porque já estava saturado da sua cidade natal onde nada
acontecia.
Ele sabia ler e escrever
bem, mas não tinha o ensino fundamental completo. Não falava inglês. Era um
pouco tímido. Nunca tinha casado, só vivido junto com uma moça por um ano. Teve
sorte porque a menina não engravidou. E teve azar porque ela preferiu ficar com
o playboy que batia nela todo dia do que com o cara honesto, mas pobre que ele
era. Mas ele não resmungava. Não tinha tempo para essas frescuras.
Andres era um cara legal.
Bom amigo. Bebia um pouco, era verdade, mas não incomodava ninguém. Nunca tinha
cheirado nada além de um Patchuly de segunda categoria. Era dedicado a sua mãe.
Seu pai era morto há dez anos. Não era um indivíduo totalmente bom, mas também
não era inteiramente mal.
Ele era um cara comum. Era
filho único. Sua mãe ficara cuidando da casa em que moravam até que ele pudesse
buscá-la para morar em Rio Grande ou voltasse porque o sonho não teria se
concretizado. Ela se conformaria com qualquer coisa, desde que o filho ficasse
bem.
Finalmente Andres adormeceu.
Sonhou sonhos verdes, enquanto tudo mudava.
TRECHO
II
O andarilho não conseguia
enxergar as coisas com total clareza. Sua visão era meio embaçada e cinza. Não
sabia desde quando via o mundo assim. Não se lembrava de nada. E apenas sentia
essa necessidade de ir se arrastando pela estrada, devagar, sem desejar outra
vida. Só uma coisa o fazia sentir um frenesi incontrolável.
Isso ocorria sempre que,
ante seus olhos secos e poeirentos, surgia alguma coisa que se movimentava e
tinha uma cor avermelhada e quente correndo dentro dela. E se a coisa ainda tinha
um cheiro diferente, então ele tinha certeza que deveria agir com rapidez e alcançá-la.
Seu instinto dizia que se
não fosse assim a coisa avermelhada e tão deliciosamente quente sumiria o mais
rápido que pudesse e ele ficaria com aquela fome insaciável doendo em seu
estomago e intestino, embora, na realidade, mesmo devorando várias coisas
quentes, vermelhas e apetitosas, aquela sensação nunca ia embora.
Mas o andarilho não pensava
nisso. Só sabia que tinha essa ‘fome’ e precisava continuar andando e
encontrando qualquer coisa com a cor certa, que fazia o cinza desaparecer
totalmente de sua visão. Então, ele enfiava os dentes nela e pronto. Nada mais
importava, até que a coisa terminava e tudo recomeçava novamente.
Ele estava andando lentamente por alguns quilômetros
já fazia alguns dias, embora para ele a noção de tempo não importasse. O sol, a
pino, havia torrado seu corpo, mas ele não havia ficado vermelho das
queimaduras. Na realidade, a tonalidade corporal deste que caminhava
incansavelmente, estava se tornando uma mistura de cores: uma cor meio
esverdeada no tórax e nas costas, como se algo ali estivesse começando a
apodrecer, uma cor de hematoma no rosto, como se ele tivesse sido esmurrado
várias vezes, e em suas mãos e pés, que pareciam ter ficado presos por um longo
período e sua circulação tivesse sido cortada nas extremidades.
Seu cheiro estava petrificado
e era totalmente desagradável. Se ele mesmo pudesse sentir o ‘perfume’ que
exalava teria vomitado na hora, pois era uma mistura de peixe podre, vegetação
em decomposição, caixa de areia de gato e sangue coagulado. Mas ele não sentia
nada disso e, por isso o cheiro não causava nenhuma sensação estranha ao seu
nariz. Seu olfato estava comprometido para o resto de sua vida.
Somente o cheiro das coisas
quentes e avermelhadas era importante. No entanto, ele já estava alcançando um nível
inumano de raiva porque já fazia algumas horas que ele não sentia esse odor, apesar
de ver outros andarilhos caminhando lentamente e de forma desconsolada, como
ele, pela estrada. Mas elas não tinham o cheiro especial, portanto, ele não ligava
para elas ou para sua companhia.
Apena quando algum dos
companheiros de viagem tentava alcançar a mesma coisa vermelha que ele via
antes dos demais era que a presença dos outros se tornava incômoda. Ai era
inevitável. Ele iria lutar com quem andava na estrada com todas as suas forças,
a custa de alguns rasgões em sua carne ou de amputações no adversário, porque
ele era um dos mais fortes que andavam por aquelas bandas. Poucos viajantes se
comparavam em força com ele, talvez por isso, seu corpo não tinha muitos
estragos.
Vez por outra ele parava no
acostamento da estrada de asfalto e ficava alguns minutos se balançando, como
se estivesse indeciso sobre se devia continuar no caminho ou não. Na verdade,
ele estava tentando ouvir algum barulho que indicasse que direção deveria tomar
para encontrar as coisas vermelhas e saciar um pouco seu apetite vertiginoso.
Mas os barulhos estavam cada vez mais raros.
Será que estaria ficando
surdo? Pouco importava, desde que visse a cor e sentisse o odor certo.
Aos poucos ele se distanciou
de um pequeno grupo que perambulava pelo meio da estrada. Eles haviam entrado
naquele mesmo estado em que ele estava alguns minutos antes. Estavam tentando
ouvir. E isso foi o erro desse grupo. Acabaram atropelados por um objeto, que
andava mais rápido que eles, era duro e enorme, que esmagou seus corpos contra
o asfalto escaldante, esparramando suas tripas e seu sangue coagulado pela
estrada.
O andarilho escapou por
sorte. Ele estava no acostamento e alguns objetos duros, parecidos com o que
atropelou o grupo, mas menores, repletos de coisas sem sentido para ele (roupas,
brinquedos, telefones, sapatos, pedaços de braços e pernas), estavam
atravancando o caminho.
Quando a massa móvel, dura e
enorme atropelou o grupo, ouviu-se um urro humano de vitória, mas foi breve,
porque as massas do mesmo tipo, mas menores, e estavam paradas, acabaram se
chocando com seu irmão maior. Foi um desastre que ele viu impassível. O objeto
tombou de lado fazendo um ruído de ferro contra ferro ensurdecedor.
O andarilho olhou para o
objeto totalmente destruído sem esboçar a menor reação. Foi quando uma coisa saiu
aos trambolhões de dentro do artefato duro, frio, sem cor e cheiro. E o melhor:
essa coisa saída do emaranhado de ferro tinha uma cor avermelhada e um cheiro
diferente do seu.
A coisa apetitosa caiu no
chão gritando e se contorcendo, enquanto a cor vermelha esguichava de uma parte
do seu corpo.
O andarilho urrou e apressou
o passo em direção a cor que besuntava seus olhos opacos, com braços estendidos
como armas apontando para o alvo. A coisa gritou e tentou se arrastar pelo chão
em desespero. Mas suas pernas vermelhas, dobradas de forma esquisita, impediam
que ela se levantasse.
Foi quando o andarilho
alcançou a coisa fraturada. Ela tentou se defender, mas foi impossível. Abrindo
a sua boca nauseabunda, o andarilho mordeu, primeiramente o pescoço, fazendo
com que os gritos do vermelho fossem repentinamente interrompidos, enquanto
seus olhos começavam a mostrar uma visão aterroripetrificada; depois atacou o tórax
da coisa, que já não respirava mais.
Foi uma lauta refeição. Ele
se levantou e continuou sua caminhada lenta na semiescuridão que ia tomando
conta da estrada com a chegada daquela ausência de luz que ele não entendia o
que significava. Sua cara e os andrajos dos trajes que cobriam seu corpo estavam
lambuzados pela cor vermelha, mas seu estomago ainda rugia de fome.
TRECHO
III
Mais um dia amanheceu e
anoiteceu. O andarilho continuava em seu passo lento, grunhindo de fome, mas
sem ter qualquer sensação de cansaço. Ao contrário. Nada o impedia de continuar
sua andança.
E ele continuava sempre,
rumando mais ainda para o sul, através da estrada que continha cada vez mais daqueles
objetos duros, chegando a um ponto onde não era mais possível que qualquer
deles pudesse transitar. Estava ficando difícil até para o andarilho e seus
companheiros continuarem andado entre os destroços, a ponto de alguns pequenos
grupos irem se amontoando do lado dos objetos e ficarem farejando o ar para ver
se encontravam restos de coisas vermelhas para devorarem.
Mas ele não era assim, tão
facilmente dissuadido. Alguma coisa, talvez algum instinto ou resquício de
alguma informação determinava a seu cérebro e seus membros que continuasse
andando, como se ele tivesse que chegar em algum destino, mesmo que não
entendesse porque. Ele somente sentia a necessidade premente de mais coisas
vermelhas para degustar.
Entretanto, o andarilho também precisava
continuar caminhando, seu corpo assim dizia. E, seguindo seu instinto
ele obedecia. Por isso aqueles objetos duros e parados, que formavam uma
barricada quase impenetrável, causaram uma frustração que beirava o desatino no
viajante.
Ele urrou, chutou e esmurrou
aqueles objetos, mas acabou percebendo que não iria conseguir tirar os mesmos
do caminho. Alguns companheiros de andança olharam para ele impassíveis, se
balançando e grunhindo baixinho. Pareciam ter desistido de prosseguir e acabaram
desviando os olhos dele, entrando naquele estado de 'balança, mas não cai'.
Ficaram observando a estrada a frente, atravancada.
O andarilho olhou a estrada e quase se deixou ficar como os demais. No entanto, ao olhar para o
lado ele percebeu um leve balanço num tufo de algo que tinha na beira da
estrada. Aquilo atraiu sua atenção esparsa. Ele resolveu investigar do que se
tratava e caminhou lentamente até o lugar.
O vento soprava em direção a
sua vanguarda, embora ele não percebesse esse fato. Nem seus companheiros.
Mesmo assim, o leve ruído junto com o movimento do tufo continuava instigando
alguma reação remota em seu cérebro praticamente sem funções.
Com alguma dificuldade ele
conseguiu ultrapassar aquele tufo que espetava um pouco sua pele castigada,
mesmo que a sensação não lhe trouxesse nenhum desconforto. Então ele viu: uma
pequenina coisa avermelhada começou a correr, dando pequenos saltos aqui e ali.
Não pensou duas vezes. O frenesi tomou conta dele no mesmo instante. A fome
insaciável agora estava insuportável, pois ele já não comia há dois dias.
Para infelicidade daquela pequena
coisa vermelha, mesmo sendo bastante rápida, o andarilho conseguiu alcançá-la.
Ele enfiou suas garras em seu bucho e devorou seu corpo em poucos segundos.
Depois lambeu o sangue nos dedos e se levantou. Ficou parado no lugar para ver
se mais alguma coisa vermelha e de cheiro bom aparecia, mesmo que fosse tão
pequena quanto aquela que ele acabara de comer.
Mas os minutos passaram e
nada de novo surgiu. Então a estranha necessidade de voltar a caminhar tomou
conta dele. Distraidamente ele olhou ao redor e percebeu que a sua frente não havia
aqueles objetos duros e intransponíveis que haviam impedido sua andança, embora
não soubesse dizer se isso tinha ocorrido há muito ou há pouco tempo atrás. O
tempo estava relativizado em sua frágil memória.
Contudo, apesar de sua
inteligência deficiente, ele percebeu que a trilha em que estava corria paralelamente
a pista de rodagem. Ele recomeçou a andar nesta trilha porque poderia chegar
aonde quer que precisasse sem ter que lutar com as massas imóveis-móveis, mas
que não sairiam de seu caminho.
E assim ele continuou seu
caminho, desta vez, totalmente desacompanhado, porque os outros andarilhos não
haviam notado sua ausência, nem tinham inteligência para perceber a trilha
que ele revelara ao entrar no mato para perseguir a pequena coisa vermelha.
Pelo menos por um tempo ele
não precisaria disputar a parca comida com nenhum outro viajante.
Após caminhar por vários quilômetros,
o andarilho chegou a um lugar repleto de estruturas que possuíam pelo menos
dois buracos. Algo instintivo dizia a ele que era nessas estruturas que as
coisas vermelhas grandes ficavam a maior parte do tempo. No entanto, neste local a
maioria desses lugares estavam com os buracos escancarados e era possível ver
que vários andarilhos estavam andado por ali. De alguma forma, ele sabia que ali não encontraria como saciar sua fome e por isso continuou
caminhando até se afastar do local.
Ele grunhia esquisitamente,
como a murmurar a insatisfação de nunca chegar onde parecia que tinha que
chegar e por causa da falta de comida. Ele estava mais irrequieto que seu
irmãos, mais atento para qualquer barulho diferente e isso fazia com que ele
acabasse entrando em alguma disputa desnecessária com algum andarilho
ocasional.
O resultado? Foi mordido no
rosto e perdeu uma orelha. O sangue coagulado escorreu brevemente pela sua face
e parou tão repentinamente quanto havia começado. No entanto, seu adversário,
aparentemente mais velho que ele, saiu sem um braço.
E ele continuou seu caminho,
deixando o amputado a amargar o desentendimento de não ter mais uma garra para
capturar sua comida. Este seria agora praticamente indefeso. Deixou de existir
três horas depois que ele e o andarilho forte brigaram raivosos, quando uma pequena horda de
viajantes o atacou para capturar de sua boca uma coisa pequena e vermelha, que
ele tinha pego com muita dificuldade.
Já tendo esquecido deste
pequeno entrevero, o andarilho acabou chegando as cercanias de uma estrutura
cujo os costumeiros buracos de entrada e saída estava fortemente reforçados por
vigas e pedaços de metal. Um pequeno bando de andarilhos rodeava as cercanias
procurando uma forma de entrar no lugar. E ele sabia porque: sentiu o perfume maravilhoso e apetitoso assim que
chegou mais perto de uma das entradas.
Não sabia dizer como, mas
achava que ali havia umas quatro ou cinco coisa vermelhas e apetitosas para
servirem de banquete. Mas isso não seria suficiente para todos os viajantes que
estavam esmurrando a estrutura, murros que não causavam qualquer impacto nos
reforços tão bem foram realizados.
Ele começou a rodear a estrutura,
observando os buracos que apareciam diante de seus olhos. Então parou um
momento, se balançando e tentando ouvir acima dos urros dos demais esfomeados
que estavam ali.
Nesse instante, ele ouviu um
estrondo que veio do meio de uma das chapas que tapavam os buracos perto do
chão. Do seu lado, um andarilho que tinha o corpo cheio de dentadas e pequenas
perfurações no corpo, tombou no solo e ficou imóvel, depois que uma nova perfuração
surgiu perto do topo de sua cabeça por onde escorreu um filete de sangue grosso e esverdeado. Ele cutucou o corpo caído, por impulso, e viu que nenhum movimento
voltou a ser realizado pela criatura fulminada pelo estrondo. Não deu a mínima
para o fato, além de que algo lhe dizia que devia evitar ser atingido por este
barulho.
Então, o andarilho levantou
casualmente a cabeça e uma percepção estranha lhe disse que tinha uma forma de
entrar na estrutura por meio de um buraco, em cima da mesma, que refletia uma
espécie de luminosidade descolorida aos seus olhos.
Ele grunhiu e olhou ao
redor. Havia uma forma retangular encostada na parede. Caminhou lentamente até
ela, evitando o local de onde o estrondo que derrubou o companheiro de viagem
surgia. Quando chegou ao retângulo apoiou os braços nela e instintivamente
subiu na mesma. Dali até a parte superior da estrutura foi muito fácil para ele
galgar.
O andarilho se equilibrou
com alguma dificuldade sobre o material escorregadio. Acabou deitado sobre o
mesmo, mas mesmo com alguma dificuldade, conseguiu vencer o espaço entre a
borda e o buraco refulgente. Bateu fracamente no vidro. Nada aconteceu e ele
urrou frustrado. Tentou mais uma vez com mais força e desta vez ele rompeu a
vidraça e arrastou o corpo pelo buraco, sem se importar com os pedaços de vidro
que rasgaram sua pele seca, indo cair no chão no lado interior da estrutura.
Então ele sentiu o cheiro
fabuloso da comida. O frenesi foi imediato. Não sabe como mas escorreu escada
abaixo, aos tropeções e quedas indo parar numa sala onde três coisas vermelhas
estavam ocupadas em produzir estrondos para o lado de fora.
Eles não ouviram o som do
vidro do andar superior sendo quebrado e nem os passos do andarilho na escada.
Ele urrou. Quando as coisas vermelhas olharam para ele ficaram paralisadas de
horror.
Ele ouviu algo que não
entendeu. Quando um dos vermelhos virou para o andarilho para se defender
usando uma forma comprida com um buraco na ponta já era tarde. O andarilho foi
tão rápido que quebrou o pescoço deste, jogou seu corpo contra os outros dois
vermelhos, que não conseguiram se desviar a tempo para evitar o choque de um
corpo de noventa quilos.
Quando perceberam, ele já
estava sobre eles arrancando o braço de um e rasgando a garganta do outro.
Finalmente ele podia se alimentar em paz.
Depois que acabou o
andarilho galgou as escadas e saiu pelo mesmo lugar que entrou. O sangue fresco
deixou os outros viajantes excitados, mas quando chegaram perto e não sentiram
o cheiro apetitoso nem viram a cor vermelha circulando nele, viraram as costas e foram buscar outras estruturas que
talvez abrigasse comida fresca ou os restos de alguma.
E o andarilho prosseguiu em
sua viagem, pois uma região menos obscura de seu cérebro quase inativo dizia
que ele estava muito próximo de chegar ao seu destino.
TRECHO
IV – RIO GRANDE/RS
Ele percorreu os últimos quilômetros
até a cidade do Rio Grande sem maiores dificuldades, exceto a falta de comida.
Os viajantes que o precederam não deixaram nem coisa vermelhas pequenas para
quem estivesse rumando na mesma direção.
A fome não gritava. Ela doía
em cada pedaço atemporal de seu corpo. Mas, contradizendo a natureza, ele
continuava andando, ouvindo, vendo e farejando o ar. Instintos aguçados dentro
de um corpo lento e estropiado, que só adquiria plena funcionalidade diante da
cor vermelha e do odor extasiante daquelas coisas frágeis que ele caçava para
se alimentar.
As estruturas que encontrou
quando entrou nos arredores do Rio Grande estavam todas vazias. Apenas alguns
andarilhos se viam aqui e ali. A maioria com seus corpos quase destruídos.
Outros se arrastando sobre os cotos de braços e pernas.
Ele continuou caminhando até
o centro da cidade, onde o número de andarilhos era muito maior, embora a
comida tenha praticamente findado. Muitos estavam naquele estado de transe:
balançando sem sair do lugar, pois não havia nenhum barulho que os motivasse a
investigar os locais adjacentes para ver se encontravam os petiscos prediletos.
Por fim, ele percebeu que
certos bandos de andarilhos rumavam em direção a um ponto específico, como
se algo os chamasse instintivamente para este local. Seguindo suas parcas
conexões cerebrais foi atrás desses bandos.
Quando chegou ao local da
aglomeração percebeu que os viajantes estavam amontoados, se balançando
placidamente, embora ele ouvisse os urros ou grunhidos desesperados de alguns e
visse que eles disputavam, a ponto de se despedaçarem, os pequenos
espaços que se abriam em meio aquela multidão esfomeada. Tudo isso para
tentarem chegar o mais próximo possível de um local que era impossível ver qual
era.
Seguindo um instinto
primitivo ele foi margeando aquela aglomeração de corpos andrajosos e
disformes, que gritavam sua frustração por não conseguirem alcançar algo que
viam a distância.
Depois de algum tempo de
caminhada ele entrou num local com estruturas antigas e com tufos por todos os
lados que eram balançados pelo vento. A alguns metros ele viu um reflexo em uma
substância que parecia se mover. Caminhou até a borda dessa substância, mas não
entrou nela, pois algo dizia que não era seguro.
Por fim ele encontrou um
ponto de observação para seus olhos opacos, empoeirados e que viam somente em
tons de cinza, a menos que algum coisa vermelha e apetitosa estivesse em seu
foco de visão. E ele viu. Haviam vários
vermelhos que pareciam se movimentar em formas que flutuavam sobre aquela
substância. E ele sentiu a frustração de não poder dar rédeas a sua
inextinguível fome.
Ficou em pé, se balançando e
observando o movimento dos vermelhos. Seu instinto dizia que em algum momento
alguns deles teriam que vir até onde ele estava. Afinal eles talvez também
sentissem fome como ele. Seu instinto mandou que ele ficasse ali então.
Apesar da fome ele pode descansar.
O descanso que os seres da sua espécie conheciam: aquele que causa tanta dor e
ansiedade, que desenvolve a paciência dos desesperados.
Finalmente Andres havia
chegado ao seu destino.
*A ideia inicial para o desenvolvimento deste conto me foi mencionada por Tiago Medeiros, assíduo frequentador da Fóx Locadora e profundo conhecedor do Mundo Zumbi.
Espero que gostes Tiago Medeiros.
*A ideia inicial para o desenvolvimento deste conto me foi mencionada por Tiago Medeiros, assíduo frequentador da Fóx Locadora e profundo conhecedor do Mundo Zumbi.
Espero que gostes Tiago Medeiros.
Wow!!!
ResponderExcluirMuito instigante!!!
Vai ter continuação????
Preciso saber onde vai terminar esta história!!!!
Muito bom!!!!
Sabia que ias gostar, Glênio. Se vai continuar? Não sei. Isso faz parte de umas coisas que estão ocorrendo nos bastidores da city, tudo muito secreto, segundo as fontes que tenho. Mas, talvez tudo se revele daqui a um tempo.
ExcluirAbraço
Adriane, ficou perfeito! Exatamente como conversamos. Muito obrigado por lembrar e colocar no papel em prática essa idéia. Tu é 10!
ResponderExcluirAgora só falta colocar isso nas telonas =D
beijão
Tiago Medeiros
Que bom que ficou do teu agrado Tiago. Quanto as telonas, não sei, mas as telinhas... Se quiseres podes usar, com os devidos créditos, meus e teus, para um roteiro de um curta. rsrsrs
ExcluirFICO FELIZ EM SABER QUE A CIDADE DE RIO GRANDE TEM UMA GRANDE ESCRITORA,,E SEU NOME É........
ResponderExcluirADRIANE...
PARABÉNS MINHA AMIGA....
UM GRANDE ABRAÇO DO SHOW DO MIRO
Oi Miro. Muito obrigada pela visita e por acreditar no meu trabalho.
ExcluirO apoio de riograndinos como tu realmente me deixa muito feliz.
Abraços para ti e tua família.
Salve Adri!
ResponderExcluirAinda não li o texto acima, preciso de mais tempo para isso. Te mando algo quando tiver. Teu blog já tá na lista do meu.
abraços
Ehhhhhhhhhhhhhhhh!!!!! O Rody apareceu. Agora tá completo.... Quer dizer falta o Volmar mas daquele lobo velho não vou falar.. Pode disser isso pra ele. kkkkk
ExcluirSim, volte quando desejares. Grata por incluir este na tua lista. E quanto ao texto aguardo o teu tempo.
Abração para ti e para a Verô.