sábado, 16 de novembro de 2013

POESIA ZUMBI II

Vou vagando sem destino
O sangue coagulado nas veias
um coração que não bate
O cérebro perdeu as estribeiras
Não restam memórias para sorrir
o dia não passa para meu corpo vazio

Congelando no tempo
a alma a se corromper
a dor de ter sentimentos
já não existe
e não há piedade
em quem parece um lobo mais que selvagem
devorando outros sem comoção

A consciência já quase não existia antes
e a perdida civilização levou o resto
Por isso não há arrependimento
para quem morreu e devora o próximo
como único meio de salvação.

Se antes as emoções estavam quase apagadas
agora estão mortas porque o mundo
apagou a humanidade que antes eu tinha
Agora é só devastação

Agora é quando os zumbis criados 
andam pelo mundo
esquecendo quem eram
e apenas devorando o que encontram
seja animal ou pessoa
Sem qualquer compaixão.



domingo, 10 de novembro de 2013

A TIA

O dia estava muito bonito. As pessoas caminhavam tranquilamente na pacata cidade no domingo ensolarado. Ela curtia o sol, sorrindo feliz pelo fato de poder desfrutar uma folga, enquanto fazia jogging às 7h da manhã num dia de verão tórrido.
Mas aí o celular resolveu criar vida. “Droga, porque eu tinha que trazer esse negócio comigo”, pensou contrariada.
No entanto, atendeu. Era seu dever, fazer o que.
-Alô? Sei, mas hoje é minha folga. Sim... entendo. Realmente é muito triste. Chegarei as 8h30, está bom? Estou um pouco distante de casa. Ok. Até breve.
Ficou contrariada, mas a situação que interrompeu seu domingo sorridente era totalmente imprevisível, por isso ela decidiu perdoar os patrões.
“Creio que fariam o mesmo por mim, se eu estivesse na mesma situação”, raciocinou para se consolar, embora não acreditasse muito da bondade do casal que a contratara. Mas, enfim, nem sempre as aparências correspondem à verdade sobre as coisas, os fatos e as pessoas.
Chegou em casa, tomou um banho rápido, trocou sua roupa pelo uniforme e saiu em disparada pelas ruas de Rio Grande, com sua Biz. Chegou pontualmente na casa em que trabalhava. O casal já a esperava na sala com a porta aberta. Tinham uma expressão de lástima e dor estampada na cara, vestiam roupas num tom sóbrio de cinza.
-Bem, ela ainda está dormindo. Sentimos por interromper teu descanso...
-Tudo bem. – Ela disse. – Nessa situação dessas eu não deixaria vocês na mão. Podem ir, e sinto muito.
Eles balançaram a cabeça em assentimento. Um olhar de gratidão refletiu nos olhos da patroa, enquanto ela derramava algumas lágrimas. Saíram, entraram no sedan preto. O patrão deu a partida e o carro deslizou rua abaixo, em direção a um lugar que ninguém gostaria de visitar.
Ela suspirou, fechou a porta e se dirigiu para o andar de cima. Bateu de leve na porta do quarto e entrou. Observou um monte debaixo do cobertor, encolhidinho. Como era estranho: as pessoas vão encolhendo a medida que envelhecem. Parece que o corpo voltava, gradualmente, a infância, só que agora todo enrugado.
Aproximou-se da cama e sentiu um leve ressonar. Os cabelos branquinhos que apareciam ali lhe despertavam certa ternura, pelo menos enquanto sua dona dormia. Quando estava acordada, a velha, às vezes, podia ficar bastante irritante ou tornar-se furiosa.
Ela estava entrando nos estágios finais do Mal de Alzheimer, com todas as mazelas que essa doença traz. No entanto, ainda tinha alguns momentos de lucidez. Nessas ocasiões era possível ver a pessoa que ela fora um dia: de personalidade forte, mas gentil.
Ela checou alguns medicamentos e horários de administração. Estava tudo sob controle. Os patrões também já tinham dado o café da manhã para a senhora acamada. De fato, apesar de suas desconfianças, o casal ajudava a cuidar bem da sua paciente.
Então, a velhinha acordou. Ela percebeu pela mudança do ritmo da respiração. Ficou preparada para um dos surtos matinais da enferma, ainda de costas, estudando as informações sobre a cômoda. Respirou fundo e se virou.
Ela encarou os olhos da senhora, mas, ao contrário, eles estavam tranquilos, plácidos, quase sãos. “Acho que vamos ter uma manhã boa, hoje”, ela pensou um tanto contente.
-Bom dia, tia! – exclamou sorridente e em tom carinhoso, mas profissional. – A senhora dormiu bem? Como estamos hoje?
-Dormi bem, sim, minha filha. – a tia respondeu com uma voz nem fraca nem forte, uma voz que todos os idosos têm, no entanto, hoje levemente chiada, barulho que vinha do seu peito, mais precisamente, e afetava as cordas vocais da velhinha, estranhamente recuperada nessa manhã de tristeza para sua família. – Só tive um sonho meio esquisito. Sonhei que minha irmã havia falecido, depois de pegar uma febre terçã. Dizem que isso é sonho ruim. Mas eu não acredito nessas bobagens, não, viu? Não precisa ficar com medo. Mas me lembra de telefonar pra ela mais tarde. Deve ser saudade esse aperto no peito.
“Coitada, quando souber, não quero nem ver. Se bem que ela pode esquecer do telefone a qualquer momento. Amanhã, ela nem vai lembrar do sonho”.
-Pode deixar tia, eu lembro a senhora sim. Quer sentar em sua cadeira agora e ir lá pra baixo comigo? Podemos ouvir música como da última vez ou ver televisão. Melhor! Ver um daqueles filmes antigos que a senhora gosta.
-Ah! Eu gostaria sim, minha filha. Vamos ver filmes. – e a velhinha riu, seu risinho de velhinha que parece que vai praticar um grande delito.
-Então vamos lá. – Ela disse, ajudando sua paciente a trocar de pijama, depois puxando a cadeira de rodas para perto da cama. Segurou a velhinha por baixo dos braços e levantou-a.
“Estranho. Ela está um pouco quente”. – pensou.
-Tia, a senhora está se sentindo bem?
-Sim, minha filha, somente com um pouquinho de frio. Podemos levar meu cobertor vermelho lá para baixo? Acho que vai chover, sempre sinto frio quando vai cair chuva.
-Sim, tia, levamos sim. – ela colocou o cobertor sobre as pernas da velhinha e pegou o termômetro para medir a temperatura da enferma no andar debaixo, quando ela já estivesse acomodada diante da televisão.
Após os preparativos e quando o filme já estava rodando no blue-ray, ela disse para a tia:
-Vou colocar o termômetro para ver sua temperatura, a senhora está um pouquinho febril. Não tira do lugar, ok?
-Ok, minha filha. – disse a velhinha sorrindo para a tv e para a acompanhante.
“Ela está bem lúcida hoje”, pensou a jovem contente.
-Hum, eu gosto muito desse filme. – A tia disse. – Filme de terror muito bem feito. Boris Karloff era um dos meus atores preferidos.
Ela sorriu da lembrança da tia. “Que doença estranha, faz a gente lembrar de coisas sem importância e esquecer o que importa. Isso é tão triste. Maldição por não terem encontrado a cura ainda”.
Ela preparou uma xícara de café e sentou no sofá, ao lado da cadeira da velhinha, que olhava com olhos arregalados a televisão, com o mesmo medo do filme, como quando ela o viu pela primeira vez.
A acompanhante notou a doente coçando calmamente o braço. Estranhou o gesto, porque a tia não tinha o hábito de se arranhar. Ela pegou o termômetro antes de verificar o machucado que estava incomodando a velhinha.
Temperatura: 38,5°.
“A tia está com febre. Melhor eu dar o remédio antes que piore”. Ela buscou o comprimido e disse:
-Tia, toma esse remedinho aqui. A senhora está com um pouquinho de febre e não queremos que isso piore, né?
-Não, não queremos, minha filha, isso deixaria meus sobrinhos muito preocupados. Eu não quero incomodá-los hoje. Eles precisam descansar também. – a tia disse totalmente lúcida. – Sim, acho que tenho um pouco de febre mesmo, está tão frio. Tem mais um cobertor? Ah! Essa é a parte que mais gosto do filme. – disse apontando para a tela onde se via uma criatura se arrastar pela sala de uma casa, pegando uma pessoa pelo pescoço e...
Ela percebeu que a senhora coçava com mais força o braço. Resolveu verificar o que era.
Quando arregaçou a manga do pijama ela notou horrorizada a marca de dentes no antebraço branquinho da senhora. Ao redor da mordida via-se um tom avermelhado como se fosse gangrena e pequenas veias, que iam estourando aqui e ali, se espalhando pela região como um mapa macabro.
-Tia, quem fez isso com a senhora? – ela perguntou, com medo de descobrir que, na realidade, aquele casal que a contratara e parecia se importar com sua paciente, eram dois sádicos que gostavam de torturar seres indefesos.
A velhinha olhou para o local que ela apontava e disse:
-Não sei, minha filha, apenas acordei hoje e vi isso aí. Será que um rato me roeu durante a noite?
-Não, isso é uma mordida de gente. Foi a senhora que fez?
-Não, não. Apenas apareceu aí, não sei como. – a tia respondeu calmamente. – Mas não se preocupe querida, logo a ferida se cura, sempre fui muito rápida em me curar.
-Ok. – ela disse para não alarmar a velhinha. – Vamos fazer um curativo pra senhora não ficar coçando o machucado, senão vai piorar. A febre deve ser disso.
Ela buscou os apetrechos e fez uma limpeza no local. Quanto mais ela limpava, mas porcaria saia. Ela começou a ficar preocupada, e com nojo, mas resolveu passar uma medicação e cobrir o local temporariamente, até ver se a febre baixava.
“Se não melhorar, eu levo ela ao hospital. Acho que vou ter que conversar seriamente com os doutores”.
O tempo transcorria lentamente e o filme parecia nunca acabar. Ela quase adormeceu no sofá. Lá pelas 11h da manhã ela olhou a velhinha, que havia parado de coçar o braço e ria até não poder mais com o filme, que já estava sendo reprisado automaticamente pelo aparelho. Ela olhou para a tv, havia sangue e alguns corpos mutilados pelo cenário.
Ela olhou para sua paciente. Notou que a tia estava enrolada em três cobertores.
“Eu não lembro de ter dado três cobertores para ela”, a acompanhante raciocinou assustada. “Ou dei e não me lembro? Afinal, acho que dei uma cochilada aqui. Também, era dia de folga e não tive tempo de dormir para me recuperar”.
Ela tocou a face da tia e sentiu que estava pegando fogo. “Meu Deus a febre aumentou”. Mediu a temperatura dela outra vez: 40°.
-Tia, a senhora está bem? A sua febre aumentou muito.
-Estou menina, não me incomode. – disse a velha um pouco mais agressiva do que o normal. – Hum, tu é bem branquinha, como aquela atriz ali do filme. E tão apetitosa...- a tia riu um riso gutural, olhando para ela como se fosse um pedaço de carne.
-A senhora não está bem, não, vou chamar seu médico. – A acompanhante disse rumando para o telefone.
-Não precisa fazer isso, não menina.– a velhinha berrou.
 Quando já estava alcançando o aparelho, ela ouviu um rangido. Parou e olhou para trás. Ficou aterrorizada.
-Já estou bem, já estou bem, menina. Não vê? – disse a tia em pé dirigindo-se devagar em sua direção.
-Minha filha, acho que lembrei quem me mordeu. – disse a velha assustada. - Foi minha irmã, durante o sonho. Ela esteve aqui e me mordeu. Doeu muito. Ela foi muito má, muito mááááááááá.
Ela prolongou a última sílaba, ficando com a boca aberta. Do orifício negro começou a escorrer uma baba esverdeada. A tia estacou repentinamente.
Ela viu a velha revirar os olhos, fechar e abrir a boca, deixando escapar um oooohhhh, misto de dor e rugido. A tia caiu no chão. Seu corpo começou a tremer incontrolavelmente.
“Convulsões!”, ela pensou enquanto corria até o corpo caído para sentir a pulsação, que estava bastante fraca. Os tremores pararam. A tia olhou para ela, como a implorar ajuda.
A respiração da velha parou totalmente.
Assim como seu coração.
E a temperatura do corpo começou a baixar a velocidade da luz.
A acompanhante levantou e foi até o telefone. Digitou um número e disse:
-Por favor, preciso com urgência de uma ambulância, minha paciente teve uma convulsão. Rápido, acho que ela está tendo uma parada cardíaca também.
Enquanto ela dizia o endereço para a atendente do serviço de emergência, sentiu, mais que ouviu, um barulho arrastado a suas costas.
A atendente, do outro lado da linha, repetia o endereço informado lentamente, lentamente.
-Sim é esse mesmo, por favor...
Então a acompanhante foi puxada e empurrada contra o armário por um braço com uma força sobre-humana. Ela só teve tempo de ver uns olhos cheios de sangue, sentir o fedor que vinha daquela boca esverdeadamente podre e a dor quando os dentes da tia se cravaram em seu rosto, arrancando um naco da sua carne branca e apetitosa.
Do outro lado do telefone, a atendente ouviu um grito pavoroso, depois o barulho do telefone batendo contra algum móvel, enquanto ela repetia:
-Alô? Alô? O que está acontecendo aí? Alô, alô?
Lá fora, o sol tórrido de verão continuava a brilhar.
O céu mantinha seu azul feliz sobre os habitantes da cidade gris. 
Enquanto isso, a tia saia para caçar na rua tranquila em que morava.