sexta-feira, 2 de maio de 2014

AS CINCO PRAGAS*

“Dessa vez eu não vou esperar”, pensei. Quando ‘os velhos’ se distraíram, eu fugi da aldeia, com minha espingarda, uma mochila com meu inseparável caderno, uma porção de pão e um cantil. Hoje eu traria comida para casa.

“Quem sabe, se eu conseguir pegar um porco selvagem ou um veado campeiro, eles acreditem que já tenho idade suficiente para sair sozinho”, raciocinei com raiva. Afinal, eu já tinha provado que era bom de mira e sabia me cuidar no mato.

Mas nem tudo acontece como a gente planeja. Agora eu estava ali, empoleirado nos galhos de uma figueira brava, sem munição, desejando que minha mãe ou irmã percebessem minha falta e viessem me resgatar.

“É Gabriel, não adianta chegar à idade da procriação. Um homem tem que saber se defender. Tu é bom de mira, mas continua burro e medroso”, pensei olhando para baixo. 

Ao redor da figueira, cinco homens extremamente agressivos tentavam subir pelo tronco para me alcançar. Felizmente, eles não conseguiriam. Não tinham capacidade mental para isso. É esquisito. Mesmo raquíticos os homens eram rápidos e fortes. 

Lidar com um deles era difícil, mas possível; tentar lutar ou matar cinco era suicídio, principalmente quando se estava sozinho, a única arma disponível era uma velha espingarda e o abobado que a carregava se esqueceu de trazer munição.

Usar uma faca? Nem pensar; um simples arranhão era fatal. Era matar as bestas ou se esconder num lugar inalcançável. Aí sim, usando algum tipo de lança, seria possível eliminar os homens esquálidos um a um.

No entanto, isso só poderia ser realizado se o idiota que resolveu sair sozinho, para provar que era macho, não tivesse esquecido a faca.
“Quem ler essa porcaria, Gabriel, vai achar que tais falando de zumbis que dizimaram a humanidade”, eu ri depois de escrever esta asneira no caderno. No chão, os homens continuavam rosnando e arranhando o tronco da figueira.

Se o mundo tivesse acabado por causa de zumbis, duma invasão alienígena ou dum meteoro caindo na Terra e provocando outra era glacial, teria sido ‘normal’.

Mas, tudo foi diferente do que se esperava. Não foi um processo natural, com certeza, embora parecesse, e foi muito rápido. Se a gente parasse para pensar, as coisas que aconteceram pareciam mais com pragas do que com os problemas que surgiriam por causa de seres extraterrestres ou coisa semelhante.

Eu não lembro como tudo começou. Eu não era nascido. Fiquei sabendo das coisas porque me contaram ou porque li em alguns jornais da época. As aldeias procuravam manter e passar informações umas para as outras, porque ainda havia pessoas que buscavam explicações para os eventos que viram. 

Havia um sistema, entre os sobreviventes, para troca de notícias. Era demorado, mas até que funcionava bem. Quando um grupo recebia ou descobria alguma informação importante remetia para o outro grupo, que se encarregava de passá-la adiante.

Ao contrário do que se esperava o ‘fim do mundo’ não tinha derrubado o fornecimento de energia elétrica, as comunicações por satélite e nem por telefone. Isso só aconteceu quando a população mundial diminuiu tanto que não houve como manter essas ‘futilidades’ funcionando.

De qualquer forma, os grupos de sobreviventes conseguiram restabelecer a energia em seus locais de abrigo, com o uso de geradores, utilizando o combustível que existia, ou criando energia alternativa. Era possível uma pequena comunidade usar computadores, refrigeradores, até vídeo games, porque a energia solar ou eólica não era esgotável.

Com cuidado também era possível usar caminhões para buscar mantimentos em lugares distantes ou para que as aldeias pudessem trocar mercadorias. O escambo virou a nova moeda.

Diferente do que acontecia nos filmes e livros, eram poucos os grupos que saqueavam as aldeias. Isso porque as pessoas aprenderam a negociar ou a se defender. Mas o principal: havia poucas pessoas interessadas em se armar até os dentes para trucidar outras pessoas porque nenhuma comunidade era tão fraca e desamparada como se costumava imaginar.

Claro, ainda aconteciam crimes graves e cruéis. Contudo, nas aldeias era mais raro isso acontecer. Parece estranho, mas num período que poderia ser chamado de ‘Segunda Idade Média’, as pessoas, pelo menos as que eu conhecia, haviam readquirido um pouco de sanidade. 

Ou seria humanidade?

Então, como um cara de 15 anos, bom de mira, boa pinta e na idade da procriação acabou em cima de uma figueira brava, fugindo de homens ferozes?

Como eu disse a culpa foi do ‘fim do mundo’, mais conhecido como ‘As Cinco Pragas’. 

Foi isso que causou o surgimento das criaturas que estão rondando o meu poleiro. Foi isso que causou ‘O Grande Deserto’, na América do Norte; ‘O Grande Tsunami’, na África, a ‘Grande Peste’, na América Latina; ‘A Grande Infestação’, na Europa, e ‘A Grande Guerra’, na Ásia. 

As pessoas que viveram para contar a história das ‘Cinco Pragas’ dizem que cada ‘Cataclisma’ foi ‘anunciado’ por um fenômeno esquisito no céu, com certeza, causado por intervenção divina. Os cientistas diziam que, com exceção, da guerra na Ásia, todas as mudanças no céu tinham uma explicação lógica porque todos os fenômenos tinham origem natural.

Mas eu não me preocupo com isso. 

Eu só sei que estou ferrado, porque esses caras aí embaixo não foram embora; porque está entardecendo e dormir nos galhos de uma árvore não é fácil, não. Se eu cair...

Mas como eu dizia, tudo começou na América do Norte. Um dia, o céu amanheceu intensamente vermelho. O Sol parecia que tinha caído naquela região. A temperatura ultrapassou os 70º. Milhares de pessoas morreram de desidratação em poucos dias. O caos se instalou nos hospitais e entre as autoridades. Então, tudo voltou ao normal durante uma semana. 

Quando as pessoas recuperaram a esperança, a temperatura começou a se elevar novamente. Após um mês, ela se fixou, tanto de dia, quanto de noite, nos 80º. As pessoas literalmente caiam mortas nas ruas, assadas ou desidratadas. Os velhos morriam primeiro, assim como as crianças. A vegetação praticamente desapareceu em poucos meses. Em questão de meses 50% da população norte-americana tinha morrido. 

Os sobreviventes acabaram descobrindo como se proteger usando o próprio calor como fonte de combustível para manter alimentos frescos e ter um pouco de refrigério da temperatura em combustão.

Mas aí achar comida se transformou num problema. Mais 20% da população morreu de fome, outros 10% por falta de cuidados médicos ou por doenças disseminadas pelos corpos que ficavam onde caiam. 

Os restantes 20% se tornaram nômades, mudando-se de região em região para encontrar mantimentos. Muitos acabaram morrendo por causa disso. Desde então, os que restaram, a maioria homens, começaram a vir, pela fronteira do México, para os países da América Latina. A imigração tem sido permitida pelos grupos locais de forma gradual, para prevenir ‘problemas de adaptação’.

No mesmo dia que o calor assolou a América do Norte, o céu na África apresentou um tom avermelhado, ao entardecer, típico daqueles que anunciam chuva pesada para o outro dia. Quando amanheceu, o céu estava praticamente escuro por causa das nuvens de chuva que se formaram no mar e se deslocaram rapidamente em direção ao continente. As pessoas se prepararam para as enchentes, comuns em determinadas épocas do ano naquela região.

Mas, não foi isso que aconteceu. Durante uma semana soprou um vento forte, que trouxe nuvens de granizo, que arrasaram as plantações existentes. Muitas pessoas e animais domésticos morreram por causa do tamanho das pedras de gelo que despencavam do céu. A ajuda humanitária não chegava à África porque o vento e o granizo não permitiam.

Enfim, o granizo passou. Apenas as nuvens ficaram rondando as pessoas, que olhavam desconfiadas para o céu, que continuou tomado pela escuridão. Aí começou a chover. Choveu sem parar durante um mês, causando grandes enchentes, deixando tribos e aldeias isoladas e sem alimentos, e propagando doenças sazonais entre seus habitantes. O número de mortos não pode ser contado.

Quando a chuva parou, muitos africanos perceberam que deveriam sair da sua terra e procurar um local onde houvesse comida e tratamento médico. Começaram a marchar em direção ao Oriente Médio e a Europa. 

Foi quando o “Grande Tsunami’ chegou.

Os cientistas não conseguiram rastrear a origem da onda gigante. Parece que ela simplesmente se formou no Oceano Índico e se dirigiu à África. A onda atingiu cinquenta metros de altura e varreu o continente negro, arrastando consigo 70% da população que tinha sobrevivido ao granizo e as enchentes anteriores. 

O resto dos africanos, que conseguiu sobreviver porque tinha alcançado um local seguro, esperou o mar voltar aos seus limites e retornou a terra natal para reconquistar o território. Mas a tarefa está sendo árdua, pelo que se sabe. Alguns sobreviventes de outros locais estão se mudando para a África, para fugir dos problemas de sua região e fazer algo de útil com a vida que têm agora.

“E eu, que queria tanto ser útil para minha aldeia, acabei me enfiando num problema que pode piorar a situação dela. Eu sou um idiota”.

De repente, sinto o silêncio ao meu redor. Eles foram embora! Agora eu posso voltar. Pode ser que ninguém saiba que eu fugi e aí não vou receber nem puxão de orelha.

Eu desço da árvore com cuidado, para não fazer barulho. Quase consigo. Acabo me enroscando com a mochila e a alça da espingarda. Só escuto o barulho do meu corpo, quando caí no chão, ecoando pela mata. Sinto uma dor terrível nas costas. Fico deitado tentando recuperar a respiração.

“Acho que quero ficar aqui para sempre”, penso.

Mas aí eu ouço. Um barulho fraco na moita que está uns dez metros a minha frente. Abro os olhos e me sento rapidamente, apesar da dor. Olho para os arbustos, assustado. É quando vejo um deles aparecer.

“Meus Deus! Como são terríveis!”, penso olhando o homem pestilento a minha frente. Vejo suas costelas salientes, seus dedos com unhas compridas, seus cabelos desgrenhados. A pele é acinzentada. Os olhos são totalmente pretos, vazios e opacos, com a loucura galopando neles.

Ele urra e eu me levanto esquecendo a dor e a espingarda. Começo a correr feito louco, ouvindo o tropel do pestilento atrás de mim. Logo, mais dois se juntam ao primeiro. 

“E agora, para onde eu vou?”, me pergunto, começando a sentir a falta do ar nos meus pulmões. “Por favor, Deus, me ajuda. Eu prometo não desobedecer mais ‘os velhos’ se eu sair dessa. Por favor”. Eu tropeço e quase caio. Vejo por cima do ombro que agora são quatro pestilentos me perseguindo.

Continuo correndo até que eu vejo uma chance de escapar. Quem sabe ainda dá tempo. Não sei como, mas consigo aumentar a velocidade. Chego perto das ‘Duas Pedras’. Um dos portos seguros da minha aldeia. A rocha tem salvado a vida de alguns dos nossos homens. Encontro a escada escondida no mato, apoio ela na beirada da rocha e subo rapidamente, puxando-a para cima, antes que as bestas consigam sequer tocar nela.

Me deito de costas na rocha e tento recuperar o fôlego. Os infectados, quatro metros abaixo, ficam gritando frustrados. Eu remexo a mochila; como um pedaço de pão e tomo um gole de água. O cantil está praticamente vazio. Fico preocupado, mas por hora posso festejar.

Me debruço na beirada da rocha e observo os homens pestilentos. Então eu grito: 

-E aí, seus manés! Ainda não foi dessa vez que eu passei para o time de vocês! – fico jogando pedacinhos de pedra nas cabeças deles.

“É Gabriel, isso sim é uma demonstração de maturidade!”, ouço meu lado responsável resmungando. Então me viro para o lado e tento descansar. Meu cérebro se pergunta quando minha irmã vai descobrir que não estou na aldeia e virá atrás de mim.

É nesse ponto que eu lembro como eu me tornei uma das ‘esperanças’ da minha aldeia. Eu não queria isso, naturalmente; eu queria apenas ser um guri normal, crescer, quem sabe ter uma família, um trabalho e curtir uma velhice bem comum.

Mas não deu para ser assim. Aliás, nenhum guri nascido na época das ‘Cinco Pragas’, ou após esse evento, tinha qualquer possibilidade de ser outra coisa além do que éramos agora. 

Talvez pudéssemos escolher novamente daqui a cinquenta anos, quando encontrassem a cura para os infectados ou a população masculina da América Latina superasse o número deles.

Mas eu acho que isso não vai acontecer, porque, mesmo com todos os cuidados, eu ainda vejo alguns homens mais velhos sumindo na mata e nunca mais voltando. Ou algum conhecido desaparecendo depois de uma caçada. Por mais que as mulheres nos cuidem, sempre ocorre um acidente, ou um desaparecimento. Não só onde vivo. Escuto dizer que essas coisas acontecem nas outras aldeias também. 

Então, para que tanto cuidado? Não sei, mas elas, as nossas mulheres, precisam conservar a esperança. Só assim elas conseguem manter os homens vivos, pelo menos por tempo suficiente para gerarem um novo bebê.

Mas estou me adiantando. Retrocedendo um pouco.

‘A Grande Infestação’ na Europa aconteceu pouco tempo depois dos eventos na América do Norte e na África. 

Durante sete dias, uma cor azul-esverdeada tomou conta do céu do Velho Mundo. Também foi detectado um alto índice de pólen no ar e as pessoas sentiam um cheiro almiscarado, que deixava os animais desnorteados.

Várias espécies de pássaros passaram a migrar para a Europa e infestaram as cidades. Cães e gatos domésticos começaram a atacar seus donos sem nenhuma explicação. Pessoas foram atacadas por enxames de abelhas, vespas, e outros insetos voadores. Surgiram nuvens de gafanhotos, tanto no campo, quanto na cidade.

Centenas de pessoas morreram por causa de alergias respiratórias, de picadas de insetos ou tiveram ferimentos graves por causa do ataque de seus animais. Os casos eram tantos que surtos de raiva se tornaram praticamente incontroláveis.

Enfim, os pássaros começaram a transmitir doenças para os seres humanos. Os ratos saíram dos esgotos com o triplo do tamanho e trouxeram a peste bubônica de volta. Os cães e gatos domésticos se tornaram totalmente selvagens e atacavam qualquer pessoa que cruzasse seu caminho. Houve uma invasão de animais selvagens na Europa com consequentes ataques mortais. E os bichos resolveram ficar na região.

A qualidade do ar piorou. Houve uma proliferação tão grande da vegetação que em poucas semanas a população precisou usar máscaras para respirar, até que chegou o ponto em que isso se tornou inviável.

Era como se uma redoma de vidro tivesse se formado ao redor da Europa. Quem não morria pelas patas dos animais que invadiram as cidades, visto que o número deles aumentou muito ao longo dos meses, morria em decorrência de doenças trazidas pelos bichos, pelas alergias ou pelo acúmulo de monóxido de carbono produzido pela vegetação, que era tão abundante que era impossível controlar sua proliferação.

Mais de 75% dos europeus morreu por causa de uma ou mais dessas situações. E o mais estranho, enquanto a vegetação vicejava e os animais se reproduziam rapidamente, os homens e mulheres se tornavam inférteis. Abortos espontâneos eram comuns.

Gradativamente, as pessoas foram deixando a Europa para as plantas e os animais e se realocando na África e na Ásia, onde tentam ajudar a reconstruir os dois continentes. Quem sabe um dia eles também possam voltar a ter filhos.

O último evento foi ‘A Grande Guerra’ na Ásia. Certo dia, embora o céu estivesse azul, começou a cair uma chuvinha fina, de aparência inocente. Os asiáticos se muniram com seus guarda chuvas e continuaram suas atividades. O chuvisco persistiu por sete dias. As pessoas perceberam que ela tinha um sabor de ferro oxidado. Alguns diziam que tinha gosto de sangue.

Depois disso, os militares decidiram que deveriam mirar seus mísseis em direção aos países vizinhos. Todos dispararam as armas simultaneamente, como se houvesse um acordo prévio. Em seguida todos os países da região entraram em confronto direto. Os civis eram imediatamente convocados. Quem não aceitasse fazer parte dos esforços de guerra era aprisionado ou fuzilado na hora. 

A guerra foi tão intensa e rápida que em pouco tempo a população de toda Ásia se resumiu a 5%, formada quase exclusivamente por famílias, bem como por desertores das tropas. Esse grupo, de alguma forma, conseguiu chegar à região montanhosa do Nepal ou ao Continente Africano.
“Escureceu totalmente e está frio, muito frio. Os carinhas pestilentos ainda estão lá embaixo. Eu preciso dormir um pouco, senão quem vai ficar louco sou eu”.

Acordo ao amanhecer. Estou quase despencando das ‘Duas Pedras’. Me afasto da beirada antes que eu caia e acabe rachando a cabeça na queda; uma morte nada heroica. Olho para baixo. Os homens pestilentos não estão lá. 

“Hora de levantar acampamento”, penso com um pouco de autoconfiança brotando dentro de mim.

Quando pego a escada ela raspa na pedra e faz barulho suficiente para trazer de volta os meus ‘amigos’. Eu olho para o céu. Isso já está perdendo a graça.

-Cadê minha irmã! – Grito como uma menininha. Fico sentado, com a cabeça apoiada nos joelhos, tentando achar uma solução. Olho para meu caderno e leio o que escrevi. Percebo que não contei o que aconteceu na América Latina. 

-Ah! Eu não quero morrer, sabia? Mas quem mandou dar uma de galo e sair sem dizer nada para alguém? – desabafo e volto para meu caderno.

Foi assim na América Latina. Na realidade, começou antes do evento na Europa. Segundo me contaram um dia o céu amanheceu com uma aparência leitosa, como se um recipiente cheio de leite talhado tivesse sido derramado na atmosfera.

Durante o dia, em várias cidades latino-americanas, começaram a surgir relatos de mães assustadas com o comportamento dos maridos. Elas encontravam os homens no quartos dos filhos, praticamente imóveis, apenas olhando para eles.

Depois elas ouviam choros, resmungos, gritos. Saiam em disparada até os quartos, onde encontravam os companheiros mordendo tanto as crianças, quanto os filhos mais velhos. Somente os de sexo masculino. Não eram mordidas que poderiam arrancar pedaços das crias, mas deixavam marcas e dores no local. 

As esposas perguntavam o que estava acontecendo. Os maridos não diziam nada. Seus olhos estavam totalmente escuros, vazios e opacos. Eles deixavam a casa e não voltavam mais. Muitos se matavam se ainda tinham um resquício de sanidade, outros apenas se enfiavam no mato e desapareciam.

Alguns dias depois, as crianças ou adolescentes mordidos acabavam como os pais. Parece que eles transmitiam algum veneno para a corrente sanguínea dos filhos. As mulheres não eram infectadas. Nem homens acima dos sessenta anos. Tinha iniciado ‘A Grande Peste’. 

Em decorrência, muitos homens acabaram se matando com medo de terem a doença e a transmitirem para os filhos. Em poucos anos a população masculina da América Latina diminuiu bastante, seja por causa dos suicídios coletivos, seja por causa do ataque dos homens pestilentos que infectavam os machos sadios, adultos ou crianças. 

Por fim, se tornou primordial deixar as cidades, que se tornavam armadilhas para os homens e crianças. Mas as mulheres e os homens idosos demoraram um pouco a perceber que tinham que proteger as aldeias que surgiram contra os pestilentos ou evitar que os meninos andassem sozinhos. 

Depois de alguns anos, chegou-se a um consenso: as mulheres e os homens não infectados deveriam fortificar as defesas das aldeias, combater os homens pestilentos e ensinar os filhos homens a sobreviverem.

Os meninos só poderiam sair da aldeia quando completassem cinco anos e sempre acompanhados. Nessa idade começavam a receber treinamento de sobrevivência: aprendiam a caçar e a se defender dos infectados, o que consistia basicamente em fugir, enquanto as mulheres e os idosos tratavam de eliminar o inimigo. 

Com o tempo os guris aprendiam a matar as bestas de forma segura. Mas eles só podiam enfrentar os doentes a partir dos quinze anos, o que coincidia com a principal responsabilidade dos homens que chegassem a essa idade: escolher uma companheira para gerar o primeiro filho.

Se fosse menina seria bom. Mas se fosse homem era melhor ainda. Depois disso o menino-homem-pai poderia sair da aldeia com mais tranquilidade e até morrer sem peso na consciência, afinal havia cumprido seu dever. Contudo, esperava-se que ele sobrevivesse mais tempo, para gerar outros filhos. 

Portanto, todo menino era treinado para ser responsável e não sair por aí, como eu, querendo dar uma de macho, colocando as gerações futuras em perigo de extinção.

É óbvio que eu ainda não cumpri meu dever com minha aldeia. É óbvio que se minha mãe ou irmã me encontrarem são e salvo vão me dar uma coça. É ainda mais certo que elas me encontrem infectado e acabem com minha vida miserável sem pestanejar.

Apesar de toda minha ironia, não é fácil viver hoje. Não é fácil ver as coisas que acontecem. Não é fácil ter esperança. Mesmo assim, eu não quero morrer. Por isso, eu preciso sair daqui. Eu quero voltar para casa e ver minha mãe e irmã. 

Mas os homens pestilentos estão aqui embaixo e eu ainda não sou bom o suficiente para matar um deles, quem dirá quatro. Minha mão toca a escada e tenho uma ideia. Eu só preciso afastar eles das ‘Duas Pedras’. Então, quebro a escada conseguindo criar uma ponta aguçada num pedaço de madeira. 

Mas como afastar aquelas criaturas? Será que sangue resolve? Afinal, eles só mordem homens, deve ter algo a ver. Pego meu cantil. Rasgo a palma da mão com a ponta da caneta, o que dói muito, e esfrego meu sangue no objeto. Deixo os pestilentos sentirem o cheiro. Eles enlouquecem. Depois eu jogo o cantil o mais longe possível, no meio dos arbustos.

Os manés correm para o local. Parece que não sou tão burro. Quando eles se afastam o suficiente, eu atiro a lança improvisada para baixo, me penduro na borda da rocha e me jogo em direção ao chão. Sinto uma fisgada no tornozelo.

Mas não tenho tempo para gemer. Eu vejo um pestilento voltar correndo. Levanto e me preparo para atingir o cretino. Acerto o golpe na lateral do crânio dele, que cai esparramado no chão. Eu começo a me afastar, mas a fera se levanta muito rápido. A loucura não conhece limites.

Começo a retroceder, mantendo a visão voltada para o homem que atingi. Ele está vindo em minha direção. Minhas costas se chocam com a rocha das ‘Duas Pedras’. Não tenho saída. Só me resta tentar um último golpe. 

Quando ele chega perto de mim eu faço um movimento de baixo para cima e enfio a ponta da lança na garganta do pestilento. Ele treme alguns segundos e cai sem se mexer.

Eu queria comemorar.  Mas os outros pestilentos estão se aproximando. E a lança está na cabeça do que eu matei. Agora é tarde. “Me perdoa mãe, me perdoa maninha”. E fecho os olhos.

Ouço o pipocar de uma arma. Três balas, três baques surdos contra o solo, três pestilentos mortos.

Elas surgem da mata, junto com dois homens idosos da aldeia, aqueles que são responsáveis pelo meu treinamento. As caras de todos estão fechadas numa expressão zangada. Eu só sinto alívio.

-Mãe! Cris! – eu queria abraçá-las, mas elas não deixam.

Elas sabem que eu estava com medo, mas não me consolam.

- Eu sei. Eu não deveria ter saído sem avisar! Prometo que não vou fazer mais.

-Realmente não vai. – diz minha irmã. – A partir de hoje podes sair com mais frequência. O teste de sobrevivência foi um sucesso. Tens passe livre agora. Resta saber se vais passar no teste de ‘produtividade’. – Cris fala debochando.

-Então foi por isso que vocês não chegaram antes? – eu não tinha vontade de reclamar, nem de replicar o deboche da Cris. Eu entendia que aquilo tinha sido necessário.

-Vamos voltar. Ainda tem a cerimônia da noite. – Minha mãe fala.

Durante nosso regresso Cris me diz que notícias importantes chegaram. Tinham a ver com os nômades da América do Norte. 

-Então aproveita para cumprir bem tua responsabilidade maninho. Em pouco tempo não haverá mais escassez de homens e aí os garotinhos perderão a vez. 

*Este conto foi escrito cerca de dois meses atrás, num surto de hiperatividade (escrevi em apenas um dia) para participar do "Desafio Literário" do Blog EntreContos. Foi realmente muito legal ter participado. A história recebeu várias críticas positivas e negativas, inclusive sobre os absurdos que contém, o que também era proposital. O tema era sobre fim do mundo, me parece que diante deste fato nada pode ser absurdo, pois qualquer coisa pode acontecer. Além do mais, a história é narrada por um adolescente que alega ter informações precisas sobre os fatos, mas terá realmente? Apesar de eu ter consciência de que a história, de fato, precisa ser melhor trabalhada, devo dizer que me diverti muito ao escrevê-la e deixei as possíveis contradições aqui, visando, quem sabe, voltar a ela no futuro e aprimorá-la.