segunda-feira, 16 de setembro de 2013

HIDROVIAGEM*

Hidroviária. Dia cinzento. Laguna estranhamente calma. Cheiro esquisito, nem bom, nem ruim: mormacento.
Ao longe, pessoas flutuam deslizando pela água transubstanciada. Vão de remo em remo, vela ou ronco diesificado.
Uma Suzuki paira sobre a água. Cento e cinquenta pulsações de um coração mecânico, momentaneamente silencioso. O desejo de voar reduzido ao estoque de energia que ela consegue acumular em seu estômago de aço.
Asas de duas cores balançam deslocando o ar. Elas rodeiam lascas de piscinios que mal conseguem alcançar na rasante descida entre as correntes de água e vento.
Subo na prancha. Vai começar a travessia: indo para acabar voltando. Do outro lado, pouco mais que areia de praia e uns quadrados que parecem sobrepor-se a água do canal. São trinta minutos para desbravar as ondulações traiçoeiras.
Mas no meio do caminho, o céu torna-se obtuso, assume um tom de chumbo trovoante. Entre os dois braços turbulam murmuromarinhos. Ao fundo, escorregando vagarosamente, monstros de aço rangem seus anteparos ou reparos. Avista-se um cemitério de naufragados corroídos pelo salino.
Ainda se vê um roncador deslizando pela laguna, transportando sabe-se lá que sementes ou malefícios.
Por fim, a nebulosa cerrania despenca em fios sobre os passadeiros viajantinos, que apenas queriam fazer a travessia sem rumores ou assustantes ventanias.
O motor da mísera chata ronca, pulando levemente coriscas ondas, e um cruento suspiro lambe os cabelos navegantes.
Vai surgindo adiante uma distorcida concretude, formando coisas, andaimes, pinos, olhos de espera: são os pousadouros dos citadinos.
Balança com dificuldade a nau transvazante para chegar ao seu destino. Restam poucos minutos para abalroarmos nos pedregulhos do aportador da vila. Desponta a poucos nós o vulto de um mínimo casario.
Enfim, chego ao lugar esquecido, mas agora quase vivo, do outro lado de uma laguna que bem poderia ser mar, se já não fosse quase rio. Irei transitar por grãos de areia até acabar minha vespertina faina deste dia.

Depois eu apenas vou voltar numa outra morracenta saltadora de ondas. Serão mais trinta minutos e qualquer sonho acalentado encontrará o seu final no mesmo ponto de partida.

*Só faltou a foto... e a companhia de Lewis Carroll.