domingo, 13 de janeiro de 2013

O CÃO

Todas as estradas acabam se comunicando umas com as outras, conduzindo a constatação de que as variáveis são múltiplas, mas as respostas sempre levam a uma mesma conclusão: todas as rotas se encontram, seja no extremo sul do estado, seja na capital.

E foi numa dessas rotas, antes desconhecida para si, que ela se defrontou com algo singular: um cão. Um simples cachorro que apareceu repentinamente na estrada. 

O bicho era esbelto, com um corpo elástico que somente os animais do campo, ou selvagens, possuem. Ele era uma mistura de vira-lata e galgo, o que fazia com que o cachorro parecesse bem simpático.

Seu pelo era cor de caramelo, com uma grande mancha branca que descia do pescoço em direção a sua barriga. Tinha olhos castanhos. Esboçava uma espécie de sorriso na boca, como se fosse um adolescente que gostasse de fazer bagunça em meio ao verde da mata que existia na localidade em que ele habitava,não por vontade própria,mas porque alguém,seu dono, o levara para lá. Estava com o pelo levemente molhado, como se tivesse nadado em algum riacho oculto pela vegetação. 

Todas essas pequenas e, talvez acertadas conclusões, ela tirara no breve instante em que o vira quando ele apareceu na BR 116, nas proximidades do cidade de Morro Reuter. 

Simplesmente o cão desceu um alto barranco, surgiu no micro-acostamento da estrada e ali ficou, olhando para o meio do matagal, com um ar meio de deboche, meio de expectativa, como se estivesse esperando quem ele deixara para trás. 

Ele pouco se importou com o trânsito um tanto intenso naquele final de tarde de domingo; estava mais preocupado em vigiar a trilha pela qual saíra do meio daquela vegetação exuberante para ver se quem o acompanhava chegaria em breve ou se, mais uma vez, ele tinha sido mais ágil e esperto e despistara seu amigo ou amiga.

Ao observar aquela cena, que transcorreu em frações de segundos, ela a achou tão bela, tão encantadoramente bucólica,o que lhe remetia a sua infância,que lastimou não ter tirado uma fotografia da expressão daquele belo cão esperando pelo seu companheiro de aventuras, fosse ele humano ou um outro cachorro "de mato" feliz com a liberdade que podiam usufruir naquele pacato recanto do mundo.

Mas não foi possível parar o veículo em que viajava naquele lugar. Além disso, certamente, o cão fugiria ao ver sua aproximação. Assim ela se conformou em guardar aquela imagem em sua memória,na gaveta das cenas que lhe evocavam emoções profundas. 

E a viagem prosseguiu, com ela sentada no banco do carona, o que lhe possibilitava ver todos esses pequenos e grandes detalhes da paisagem que ia ficando para trás,a medida que a viagem prosseguia. 

Cerca de um quilômetro adiante do ponto onde encontrara o cachorro, que tanto lhe despertara curiosidade e uma bela fotografia mental, ela reparou em uma pequena muda de roupa cor de rosa pendurada em um arbusto a beira da estrada. 

"Parece ser de criança",pensou. "Porque, com tanta gente precisando, as pessoas desperdiçam o que têm?" questionou-se, sabendo que não teria uma resposta satisfatória para a própria pergunta. 

Ao mesmo tempo que se perguntava sobre o desperdício percebeu um sutil rastro no lado contrário da pista e um ponto da vegetação levemente machucado, pisoteado, como se algo tivesse sido arrastado por ali a força. Mas foi algo tão rápido que,a princípio,não lhe causou maiores impressões e ela logo esqueceu a roupa cor de rosa e a trilha recém aberta na mata.

Por fim, conseguiu chegar a Porto Alegre e ao hotel em que ficaria hospedada naquela noite até que pudesse retomar,no dia seguinte,a viagem até sua terra natal,e na qual chegaria através da Br 392. Foi encaminhada para o seu quarto, tomou um banho para que a poeira que se grudara em seu corpo escorresse pelo ralo.Deitou-se e dormiu como uma pedra até as 8h da manhã.

Acordou com a imagem daquele cachorro na mente e sorriu. Cenas bucólicas sempre lhe causavam vívidas impressões. Pensou até em escrever algo sobre o que tinha visto. Já tinha até um possível início para a história.

Depois de se vestir, desceu para tomar o café e dar uma olhada nos jornais, antes de prosseguir a viagem. Quando se sentou viu a primeira página do jornal mais prestigiado do seu estado e,para sua surpresa, lá estava ele, o cão,com seu belo corpo, sua pelagem bonita e seu sorriso maroto.Ela sorriu brevemente e pensou: "Que coincidência!"

Foi nesse instante que ela percebeu o restante da cena que fazia parte da foto: em uma mesa, exposta com certo mal gosto e grande crueza,uma enxovalhada e pequena peça de roupa cor de rosa; ao lado desta, uma faca de caça e uma camisa sujas de sangue,bem como uma corda enrodilhada, como uma serpente prestes a dar o bote.

Ao lado do cão estava postado,em pé, com as mãos para trás, possivelmente algemadas, um jovem de cerca de vinte e poucos anos, branco, loiro, de olhos claros, com um rosto angelical de tão belo. Estranhamente, ele aparentava esboçar o mesmo tipo de sorriso de seu amigo de quatro patas.

Ela lembrou do rastro sutil que havia visto na estrada.Sentiu um calafrio subir por suas pernas e chegar a sua nuca, arrepiando os pelos dos braço e o cabelo de seu couro cabeludo quando observou os olhos do rapaz que fazia par com seu cão sorridente.

A manchete dizia: "Polícia Civil e Militar prendem jovem que vinha aterrorizando o interior, por sequestrar, violentar e matar cruelmente meninas com roupas cor de rosa. Ele usava seu cão para atrair as vítimas".

Ela preferiu não ler a notícia na íntegra,mas ouviu dizer que o criminoso alimentava o animal com pedaços de suas vítimas.

Ela sentiu uma bola subir até sua garganta. Agora aquela imagem linda estaria maculada em sua mente até o fim de seus dias. No fim, aquele cão não era tão inocente quanto ela acreditara.