quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

YIN E YANG

Precisava colocar em algum lugar o que estava pensando. Não conseguia encontrar o recipiente correto e isso estava aumentando não só a urgência de se livrar daquilo que gritava em sua mente e parecia ecoar no ar, mas também a necessidade de vomitar.

Era estranho isso: sentir o vômito na garganta toda vez que queria gritar alguma coisa e não conseguia. Acreditava, ou ao menos tinha a percepção, de que quase ninguém sofria desse mal. Como explicar isso? Simplesmente parecia que, se não gritasse, iria involuntária e incontinentemente expelir uma gosma com tudo que estava pesando no estômago e no cérebro. 

As pessoas costumam sentir diferente e talvez fosse essa a forma que tinha de sentir bem ou mal estares.

No momento era uma mistura das duas sensações: era bem estar porque finalmente algo de sentimentalidade ainda existia no seu interior; e era mal estar por não saber mais como sentir os sentimentos.

O cérebro captava o sol na rua e sentia que iria trabalhar melhor. O coração via o tal corpo celeste e ficava pensando na possibilidade tangível de que seria novamente rasgado até o fim do verão.

Admitia: uma paixonite meio adolescente contribuía para isso, o que não causava em si um sentimento de elevação de sua autoestima. Ao contrário, percebia que isso bem poderia resultar em algum transtorno presente ou futuro. 

Além disso, tinha toda uma gama de responsabilidades para cuidar, portanto, devia deixar de lado os devaneios quase românticos que às vezes assaltavam seu corpo adulto e davam um pouco de conforto para seus dias mornos, por vezes, insuportavelmente tomados pela monotonia.

No entanto, bem sabia, que todo mundo precisa de um pouco de sal ou doçura em seu cotidiano, mesmo que não seja dado a ilusões ou que tenha plena consciência de que não passa apenas disto.

Enquanto isso vivia interagindo com uma gama de livros que ajudavam, seja a matar o tédio, seja a matar sua pessoa do mesmo mal. Eram livros pesados, com centenas de folhas, discorrendo sobre possíveis saídas para problemas alheios, ou contribuindo para transtornar qualquer forma de solução.

Há muito tempo já tinha aprendido que o que era tido como a resolução perfeita para as coisas se transmutava justamente na imperfeita forma de agravar o problema. 

Isso irritava sua mente, com toda certeza, que não era dada a contemplações diante do que era aparentemente injusto. Por isso, vinha tentando domar seu conceito próprio; adaptá-lo ao pensamento público e notório de que aquilo que para si era uma violação de direitos, bem poderia significar para uma grande parcela da população algo perfeitamente natural.

Então, as contraditórias sensações bem estar/mal estar digladiavam em seu interior. Nenhuma delas recuava, por isso seguia nesse vai não vai de alegria e tristeza conjugadas, porque sempre teve consciência de que isso era costumeiro em sua vida desde sempre.

Assim, persistia em carregar as duas(des)aventuranças com certa tranquilidade, pois se sabia dúplice desde que se descobrira gente na cidade gris.

A descoberta dessa esquisita duplicidade (quase um caso Dr. Jeckil, Mr. Hyde) ocorreu aos cinco anos de idade quando percebeu que seus bonecos não eram totalmente do seu agrado. Escalpelou alguns, queimou outros, condenou ao ostracismo os restantes, mantendo-os longe de si, mas perto o suficiente para, eventualmente, acarinhá-los ou torturá-los.

Se a destruição ou tortura psicológica de brinquedos estivesse entre os aspectos que definem um possível psicopata, certamente acabaria por se enquadrar nesta patologia psiquiátrica.

Contudo, parece que isso ainda não entrara para tal rol, por isso entendia que nada havia de errado com sua psique. A não ser o fato de querer guardar seus pensamento e sentimentos em recipientes ou sentir vontade de vomitá-los quando percebia um deles se insinuando em sua mente ou corpo contra sua vontade.

“Na realidade”, concluiu, “talvez essa mistura estranha fizesse fazer parte da tríade da sociopatia. Afinal, ser dúplice pode ser considerado normal? Ou o normal é ser dúplice?”

Perguntas difíceis de serem respondidas. Por isso engavetou seus dilemas. Ocultou sua esquisitice a golpes de rebenque e continuou em sua rotina sem que outros suspeitassem de suas crises de dualidade. 

Mas desenvolveu o mau hábito de acordar todos os dias às 03:56 da madruga. 

Era quando via, no canto escuro do quarto, um par de olhos flamejantes rindo um risinho nervoso de quem tinha ido dar um passeio sem contar aos pais e era flagrado justamente quando estava entrando no quarto, acreditando que tinha praticado o crime perfeito. 

Em sua frágil sabedoria decidiu nunca perguntar como eram os passeios daquela criatura desconhecida, mas estranhamente familiar.