sábado, 27 de dezembro de 2014

A TEMPESTADE

Dizem os teóricos e os residentes de certa cidade do extremo sul do país que, quando uma tempestade se aproxima, devido a carga de eletricidade que ela traz consigo, tanto os objetos, quanto os seres vivos, podem sofrer alguns fenômenos corporais ou, até, mentais.

Se esta é a expressão máxima da verdade, ou se tal teoria já foi provada cientificamente, é coisa para a qual eu ainda não vi uma resposta definitiva, seja em livros da área, seja em aulas ministradas pelos professores que destes fenômenos terrestres entendem mais do que eu.

Certamente, por experiência própria, ou por uma ou outra história a mim repassada, eu manifesto a tendência de acreditar que esses relatos condizem com a realidade; que ocorrem de fato e que, se houvesse um maior interesse em explicar esse fenômeno da natureza, causado pelas tempestades, ele já deveria constar dos livros didáticos, principalmente para que os cidadãos do mundo, e de cidades onde temporais se formam com mais frequência, pudessem estar preparados para as diversas reações físicas e mentais que a chuvarada, caindo impetuosamente pela terra, bem como fazendo explodir nos céus raios e trovões, pode causar nos seres humanos de bem, ou não, que residem nesses locais estranhamente influenciados pela maresia e ventania que açoita ruas, prédios e campos abandonados.

E para demonstrar a veracidade do que descrevo irei narrar uma situação, uma única, que comprova que animais e homens - digo homens para usar o substantivo genérico que inclui os machos e as fêmeas da espécie humana - sofrem, mesmo sem saber, a influência das monções, principalmente daquelas que se originam em tempestades formadas repentinamente e vergam a vontade de todos os seres que por elas são atingidos.

Julia era uma moça quieta, considerada por familiares, amigos e vizinhos como uma criatura meiga e prudente, digna de uma confiança quase cega por parte destes. Nunca um gesto ou ação levantou qualquer suspeita sobre seu caráter e predisposição a boa paz.

A guria vivia tranquilamente, sem grandes arroubos de sentimentalidade, além de alguns momentos em que externava uma alegria mais intensa do que seria de se esperar, ou uma tristeza mais profunda do que o necessário por aqueles que, aparentemente, sofriam alguma injustiça.

Julia era uma pessoa extremamente justa, talvez eté um pouco demais.

Apesar disso, sua família e amigos conseguiam conviver com os pequenos excessos que ela mostrava por conta desta característica.

Pois bem, num dia de forte calor que se abateu sobre o arquipélago em que vivia (alguns teóricos dizem que, na verdade, é um istmo), Julia acordou com uma leve dor de cabeça e um quebrantamento no corpo que não conseguia explicar. Achou que deveria avisar sua mãe e ficar na cama. Afinal poderia estar entrando em seu período mensal, que, geralmente, era torturante.

No entanto, contrariando sua natural prudência, embebida de uma coragem que poucos sabiam que ela ocultava, Julia resolveu enfrentar o mal estar e dar conta das suas lidas diárias. Vestiu-se com o normal aprumo e simplicidade e dirigiu-se para a cozinha, onde tomou o café preto com duas fatias de pão caseiro, como era seu hábito de guria criada sem frescuras e num Estado em que se gostava de preservar as tradições.

Quando levantou-se da cadeira, sentiu um tonteira, que fez a cozinha rodopiar diante de seus olhos, ao mesmo tempo em que ouvia sons estranhos, como os compassos de uma música que, por mais que ela não quisesse, deixava uma vontade incontrolável de sair deslizando pelo ar.

Ouviu vozes, também, que convidavam Julia para dançar ao som daquela música esquisita; que diziam que ela poderia fazer o que bem entendesse que ali, naquele lugar, ninguém daria atenção para os desvarios que praticasse, nem condenariam suas ações.

Julia temeu por si, por sua sanidade e pela vida pacata em que vivia. Achou que deveria estar pior do que imaginava. E se estivesse ficando louca? Certamente, se alguém da casa descobrisse o que estava acontecendo seu destino era certo, como já muitas vezes vira acontecer.

A guria fechou os olhos com força. E repetiu para si mesma, diversas vezes, que aquilo era passageiro, que era causado pela forte onda de calor que estava recaindo sobre a cidade. Repetiu tudo isso até que sentiu que nada mais rodopiava, que a música tinha sumido e as vozes haviam se calado.

Abriu os olhos e notou que tudo retornara a normalidade. Suspirou aliviada. Em outra ocasião isso já havia acontecido, mas nunca desta forma, nunca assim tão intensamente a ponto de quase quebrar sua força de vontade. 

Julia recolheu a caneca vazia, que exalava o cheiro do café, e a faca que usou para passar a manteiga no pão. Dirigiu-se para a pia e ali depositou os objetos para lavá-los. Foi quando olhou pela janela, que se abria para o quintal que tanto gostava, onde sua mãe cultivava um pequeno jardim e algumas arvores frutíferas. Ela olhou para aquele recanto com uma alegria contida, pois amava deitar-se sobre as árvores para ler e para pensar na sua vida. As vezes ela dormia ali. Quando acordava, as vezes sentia que algum sonho estranho a tinha transportado para um lugar que ela não deveria ir. 

Nessas ocasiões, que, em geral, eram precedidos de alguma chuva, ela acordava com a boca seca, um gosto de álcool na garganta e a boca como que sugada, embora ela não soubesse pelo quê.

Afastou esses pensamentos sombrios da mente e olhou para o céu. Assustou-se. O anil que revestia a abobada estava sendo tragado por um tom escuro, cinza plúmbeo, carregado e estarrecedor. No mesmo instante, os pelos de seus braços se arrepiaram e ficaram levemente ouriçados, como se tivessem sido atingidos por milhões de pequenos choques elétricos, seu corpo sentiu a vibração dos raios e trovões que soavam ainda muito longe, o que aumentou a temperatura corporal da menina.

Já não era um mal estar que Julia sentia. Era uma vontade irresistível de sair daquela casa e dançar debaixo daquele céu nefasto e comungar com a chuva que ela, com certeza absoluta, sabia que iria desabar sobre a cidade portuária em que morava.

Nisto sua mãe entrou na cozinha,dizendo:

-Vem temporal aí, minha filha. Sai de perto da janela. Me ajuda a tapar os espelhos e... - a mãe parou de falar e observou as costas rígidas de sua filha, que estava com as mãos apoiadas na pia. - Julia, está tudo bem? - a zelosa criatura perguntou para a guria que nem um movimento apresentava.

Julia não estava ouvindo sua mãe. Ela só ouvia o som da tempestade se aproximando, a intensidade dos trovões e raios que disputavam entre si quem era o senhor do ar. E as vozes. Ela ouvia aquelas vozes que a convidavam para bailar nas poças de água, dar as mãos as gotas de chuva e se deixar levar pelo compasso de uma música que só era possível ouvir na natureza.

A mãe se aproximou da filha e tocou seu ombro com cautela.

-Julia? - chamou sussurrando, para evitar de assustar a menina, afinal já não era a primeira vez que ela via a filha naquela estranha posição.

Julia se virou calmamente. Os pelos dos braços ainda arrepiados, o coração a batucar num ritmo alucinante, o sangue a correr por suas veias com uma tal força e intensidade que ela simplesmente pedia que ele não parasse mais.

A menina encarou a mãe por um momento e baixou a cabeça, enquanto a senhora tentava acordar a filha, chamando por seu nome e dizendo que estava tudo bem, que tudo ia passar.

Repentinamente ela levantou a cabeça. A mãe deu um passo para trás, levando a mão ao peito, sobre o coração, que, neste instante, sofreu uma breve parada.

-Julia? Quem é Julia? - a moça perguntou com um sorriso zombeteiro no rosto. - Acho que ela foi dormir um pouquinho Dona Maria. - E a criatura que Dona Maria viu diante de si saiu rapidamente de perto de si, abriu a porta da cozinha justamente quando as primeiras gotas de chuva começavam a despencar com força sobre a terra ressecada.

Dona Maria viu aquela que era e não sua filha rodopiar debaixo da saraivada de água que os céus derramavam sobre o quintal até que seu vestido branco ficou totalmente encharcado. Depois disso, a aquela china desavergonhada parou um instante. Olhou para a porta da casa, onde Dona Maria havia se postado, soltou uma gargalhada e gritou:

-Não se preocupe, Dona Maria, sua filha esta bem cuidada. - A criatura abanou para a senhora que escorregava aos prantos em direção ao chão, e saiu correndo em direção ao fundo do pátio, onde pulou com desenvoltura, como se já houvesse feito isso centenas de vezes, o muro que circundava a casa em que Julia morava e era protegida.

Nunca mais Dona Maria viu a filha. Seu coração partiu-se naquele dia, mas ela sobreviveu, vivendo da vã esperança de que, na próxima onda de calor e tempestade bravia que se abatesse sobre a cidade, Julia retornasse para casa.

Dizem alguns que é comum ver nos bailes da cidade, uma menina de branco, meiga e terna, que entra sem fazer alarde, mas que após ouvir os primeiros acordes de uma música qualquer, se transmuda como uma tempestade, e vira a dona do baile, quase china sem ser de verdade.

sábado, 25 de outubro de 2014

O AZUL DA PERVERSIDADE

Estou sentado no sofá, debaixo da escada, local onde sei que muitos ficam esperando. Na minha frente uma porta está aberta para uma sala escura. Acima da minha cabeça, deslizando pela escada, escuto as notas melancólicas de um violino, fazendo meu peito se apertar.

Estou aqui sentado; aguardo o momento em que ouvirei meu nome. Então, terei que deixar esse cantinho, confortável e semiescuro, embora tenha uma porta que se abre, como uma boca desdentada e assustadora, para uma sala negra, e por sobre esse canto se apoie alguma coisa invisível e sem sentimentos.

No andar de cima o violino para de ser tocado repentinamente. Em seguida, surge uma música, rápida, meio enlouquecida. Sinto o pelo dos braços e da nuca se eriçarem e meus nervos, que parecem normais, se quebram sob a intensidade da escuridão da sala e da música que escuto.

Eu deveria fugir, mas não consigo. Estou paralisado pelo ambiente que existe aqui. Além do que, fugir para onde? A sala me arrepia, a escada me fere com seus degraus, repletos de silêncios e estalos, e a rua, bem, a rua eu pouco conheço; ela me deixa apavorado com sua claridade, seu barulho e com as pessoas que voluteiam, quase sem sentido ou direção, pelas calçadas. 

Tudo é tão confuso lá fora!

Por isso, fico sentado, sentindo o suor escorrer pelas costas, com as pernas coladas uma na outra, os braços tensos, as mãos espalmadas sobre as pernas. Elas também suam, e se eu levantar ambas contra a semiluz que vem do corredor será possível ver que elas tremem levemente.

Outra vez aquela música triste recomeça: um refrão, depois outro e outro, até que o violino silencia totalmente, depois de acabar com a última gota de coragem que eu tinha.

A hora chegou.

Uma porta é aberta. Ouço passos se aproximando da escada e o peso de um pé no primeiro degrau, que estala sob a leveza de um corpo que se aproxima calmamente. 

Na sala a escuridão se adensa. O par de pés, socados dentro de botas lustrosas, chega, enfim, ao primeiro andar, o solado batendo contra o piso de madeira, tão tranquilo e firme ao mesmo tempo. 

Arrepio.

Viro a cara para a escuridão da sala a minha frente. Eu deveria ter entrado nela. 'Seria um alívio momentâneo', penso, soltando o ar que eu havia represado nos pulmões. Chega a doer quando libero o oxigênio que conti.

Quando volto o rosto, lá está.

O cabelo preto cuidadosamente penteado para o lado, o sorriso branco e aqueles olhos – aqueles olhos onde a perversidade se oculta por detrás de uma azulada inocência.

sábado, 16 de agosto de 2014

AV. RHEINGANTZ


Como posso me fazer entender?

Contudo, eu preciso dizer que, para mim, andar pela Av. Rheinghantz é sapatear no ritmo de outra época, que já se foi certamente, mas que está tão presente quanto a maresia que sopra sobre a cidade.

Eu gosto de olhar as casas do antigo complexo industrial; casas que abrigavam os mestres, engenheiros ou operários que trabalhavam na antiga fábrica de tecidos. Gosto da velhice desses casarios, do seu estilo alemão e das figurinhas esculpidas nas janelas de madeira maciça, que são os olhos dessas habitações que têm um som de coisas quase esquecidas.

Por esse simples motivo eu não me importo de esperar aqui no umbral da garagem de uma casa mais moderna e, creio desabitada, enquanto despenca uma chuva fininha, requentada, sobre a pista de rolagem desta antiga Avenida. Aguardo pacientemente o começo da apresentação, que vai ocorrer numa das casas de arte de Rio Grande, observando essas casinhas, tentando imaginar quem já viveu, ou vive hoje, nelas.

Gosto de tentar recriar as histórias, verídicas ou não, que elas contêm. Aprecio ver as rachaduras nas suas paredes, os fiapos de capim crescendo entre elas, testemunhas do quase abandono que essas sentem recair sobre si; ou ver as reformas que seus atuais habitantes fizeram e como isso transformou a alma dessas habitações.

Noto que existem duas delas que estão à venda. Uma, num aglomerado de casinhas geminadas, com corações esculpidos nas janelas, que são seus olhos para o mundo de fora. Outra, mais imponente entre as demais, com pátio próprio, telhado resistente, para proteger moradores e sombras das intempéries que acometem a cidade gris, tão acompanhada e solitária ao mesmo tempo, com seu ar de seriedade austera, como teriam seus proprietários originais.

Concluo que eu bem poderia morar numa dessas duas casas, independentemente do estado em que se encontram.

Eu poderia morar nelas ou num estábulo, desde que eu conseguisse sentir que pertenço ao lugar e tivesse êxito em conferir um pouco de dignidade ao local. Porque, no fim das contas, dignidade é algo que se pode encontrar num barraco de chão batido e escapulir de um palácio, ou vice versa.

Mas eu poderia viver em qualquer lugar: no interior ou na capital, numa vila ou no centro da cidade; bastaria apenas possuir este sentimento de que pertenço a algo ou a alguma coisa.

Estranho isso, estar sem se colocar ou se sentir colocado, sendo e não sendo parte do que te rodeia.

Dizem que esta sensação acomete aquela classe de seres humanos conhecidos como cosmopolitas: pessoas que pertencem ao universo; vivem bem em qualquer lugar e convivem naturalmente com todos os seres, inclusive bichos de estimação com tendências neuróticas.
Entretanto, penso que essa cosmopolidade, que para alguns cai muito bem e é natural, pode descambar para um sentimento, mesmo que efêmero, de desprezo pelo resto da humanidade que não consegue se adaptar a idade contemporânea, com seu desapego por tudo e todos. Afinal, se tu és parte do cosmos, um cidadão do mundo, ou do universo, como aceitar que outros não possuam as mesmas condições de adaptação?

Portanto, creio que não. 

Eu poderia viver em qualquer lugar, sob a singela condição de que ali, naquele ambiente eu sentisse essa coisa, que as pessoas comuns sentem, de pertencer ao lugar em que estão.

Por isso, não sou cosmopolita. 

Sou aquele que está sem nunca estar; o que fica sem conseguir permanecer muito tempo no mesmo ambiente. Sou apenas alguém que deseja a normalidade das pessoas que pertencem a algo, mesmo tendo consciência de que nunca obterá esse estado de espírito.

Assim, me despeço das casas que poderiam ser minhas, mas não serão. A peça teatral vai começar.


Tenho quase certeza de que a tragicomédia bem poderá retratar os desencontros em que vivo, durante os passeios noturnos que faço por esta cidade cinzentamente colorida.

domingo, 25 de maio de 2014

CAMUFLAGEM*

Caminha entre errantes.
O cérebro meio vivo
anda no meio da maioria vegetante

Caminha com roupas fedorentas 
e meladas de ferro vermelho
amortecendo a humanidade 
que em si ainda existe

E eles andam andam andam
- Oh! Deus, como andam! - 
incansáveis em seu rumo perdido
buscando saciar aquilo que não sentem.

São a horda que sobrepuja 
a minoria em cujo peito algo pulsa.

E o cérebro meio morto 
caminha caminha caminha 
-Por favor, que os joelhos suportem a jornada! - 
entre os errantes.

Prefere a camuflagem da meia morte
do que a companhia daqueles que dizem pensar
mas abocanham ferozmente os viventes 
que ousem demonstrar 
aos humanóides que ainda é possível sentir.

*Série Poesia Zumbi.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

AS CINCO PRAGAS*

“Dessa vez eu não vou esperar”, pensei. Quando ‘os velhos’ se distraíram, eu fugi da aldeia, com minha espingarda, uma mochila com meu inseparável caderno, uma porção de pão e um cantil. Hoje eu traria comida para casa.

“Quem sabe, se eu conseguir pegar um porco selvagem ou um veado campeiro, eles acreditem que já tenho idade suficiente para sair sozinho”, raciocinei com raiva. Afinal, eu já tinha provado que era bom de mira e sabia me cuidar no mato.

Mas nem tudo acontece como a gente planeja. Agora eu estava ali, empoleirado nos galhos de uma figueira brava, sem munição, desejando que minha mãe ou irmã percebessem minha falta e viessem me resgatar.

“É Gabriel, não adianta chegar à idade da procriação. Um homem tem que saber se defender. Tu é bom de mira, mas continua burro e medroso”, pensei olhando para baixo. 

Ao redor da figueira, cinco homens extremamente agressivos tentavam subir pelo tronco para me alcançar. Felizmente, eles não conseguiriam. Não tinham capacidade mental para isso. É esquisito. Mesmo raquíticos os homens eram rápidos e fortes. 

Lidar com um deles era difícil, mas possível; tentar lutar ou matar cinco era suicídio, principalmente quando se estava sozinho, a única arma disponível era uma velha espingarda e o abobado que a carregava se esqueceu de trazer munição.

Usar uma faca? Nem pensar; um simples arranhão era fatal. Era matar as bestas ou se esconder num lugar inalcançável. Aí sim, usando algum tipo de lança, seria possível eliminar os homens esquálidos um a um.

No entanto, isso só poderia ser realizado se o idiota que resolveu sair sozinho, para provar que era macho, não tivesse esquecido a faca.
“Quem ler essa porcaria, Gabriel, vai achar que tais falando de zumbis que dizimaram a humanidade”, eu ri depois de escrever esta asneira no caderno. No chão, os homens continuavam rosnando e arranhando o tronco da figueira.

Se o mundo tivesse acabado por causa de zumbis, duma invasão alienígena ou dum meteoro caindo na Terra e provocando outra era glacial, teria sido ‘normal’.

Mas, tudo foi diferente do que se esperava. Não foi um processo natural, com certeza, embora parecesse, e foi muito rápido. Se a gente parasse para pensar, as coisas que aconteceram pareciam mais com pragas do que com os problemas que surgiriam por causa de seres extraterrestres ou coisa semelhante.

Eu não lembro como tudo começou. Eu não era nascido. Fiquei sabendo das coisas porque me contaram ou porque li em alguns jornais da época. As aldeias procuravam manter e passar informações umas para as outras, porque ainda havia pessoas que buscavam explicações para os eventos que viram. 

Havia um sistema, entre os sobreviventes, para troca de notícias. Era demorado, mas até que funcionava bem. Quando um grupo recebia ou descobria alguma informação importante remetia para o outro grupo, que se encarregava de passá-la adiante.

Ao contrário do que se esperava o ‘fim do mundo’ não tinha derrubado o fornecimento de energia elétrica, as comunicações por satélite e nem por telefone. Isso só aconteceu quando a população mundial diminuiu tanto que não houve como manter essas ‘futilidades’ funcionando.

De qualquer forma, os grupos de sobreviventes conseguiram restabelecer a energia em seus locais de abrigo, com o uso de geradores, utilizando o combustível que existia, ou criando energia alternativa. Era possível uma pequena comunidade usar computadores, refrigeradores, até vídeo games, porque a energia solar ou eólica não era esgotável.

Com cuidado também era possível usar caminhões para buscar mantimentos em lugares distantes ou para que as aldeias pudessem trocar mercadorias. O escambo virou a nova moeda.

Diferente do que acontecia nos filmes e livros, eram poucos os grupos que saqueavam as aldeias. Isso porque as pessoas aprenderam a negociar ou a se defender. Mas o principal: havia poucas pessoas interessadas em se armar até os dentes para trucidar outras pessoas porque nenhuma comunidade era tão fraca e desamparada como se costumava imaginar.

Claro, ainda aconteciam crimes graves e cruéis. Contudo, nas aldeias era mais raro isso acontecer. Parece estranho, mas num período que poderia ser chamado de ‘Segunda Idade Média’, as pessoas, pelo menos as que eu conhecia, haviam readquirido um pouco de sanidade. 

Ou seria humanidade?

Então, como um cara de 15 anos, bom de mira, boa pinta e na idade da procriação acabou em cima de uma figueira brava, fugindo de homens ferozes?

Como eu disse a culpa foi do ‘fim do mundo’, mais conhecido como ‘As Cinco Pragas’. 

Foi isso que causou o surgimento das criaturas que estão rondando o meu poleiro. Foi isso que causou ‘O Grande Deserto’, na América do Norte; ‘O Grande Tsunami’, na África, a ‘Grande Peste’, na América Latina; ‘A Grande Infestação’, na Europa, e ‘A Grande Guerra’, na Ásia. 

As pessoas que viveram para contar a história das ‘Cinco Pragas’ dizem que cada ‘Cataclisma’ foi ‘anunciado’ por um fenômeno esquisito no céu, com certeza, causado por intervenção divina. Os cientistas diziam que, com exceção, da guerra na Ásia, todas as mudanças no céu tinham uma explicação lógica porque todos os fenômenos tinham origem natural.

Mas eu não me preocupo com isso. 

Eu só sei que estou ferrado, porque esses caras aí embaixo não foram embora; porque está entardecendo e dormir nos galhos de uma árvore não é fácil, não. Se eu cair...

Mas como eu dizia, tudo começou na América do Norte. Um dia, o céu amanheceu intensamente vermelho. O Sol parecia que tinha caído naquela região. A temperatura ultrapassou os 70º. Milhares de pessoas morreram de desidratação em poucos dias. O caos se instalou nos hospitais e entre as autoridades. Então, tudo voltou ao normal durante uma semana. 

Quando as pessoas recuperaram a esperança, a temperatura começou a se elevar novamente. Após um mês, ela se fixou, tanto de dia, quanto de noite, nos 80º. As pessoas literalmente caiam mortas nas ruas, assadas ou desidratadas. Os velhos morriam primeiro, assim como as crianças. A vegetação praticamente desapareceu em poucos meses. Em questão de meses 50% da população norte-americana tinha morrido. 

Os sobreviventes acabaram descobrindo como se proteger usando o próprio calor como fonte de combustível para manter alimentos frescos e ter um pouco de refrigério da temperatura em combustão.

Mas aí achar comida se transformou num problema. Mais 20% da população morreu de fome, outros 10% por falta de cuidados médicos ou por doenças disseminadas pelos corpos que ficavam onde caiam. 

Os restantes 20% se tornaram nômades, mudando-se de região em região para encontrar mantimentos. Muitos acabaram morrendo por causa disso. Desde então, os que restaram, a maioria homens, começaram a vir, pela fronteira do México, para os países da América Latina. A imigração tem sido permitida pelos grupos locais de forma gradual, para prevenir ‘problemas de adaptação’.

No mesmo dia que o calor assolou a América do Norte, o céu na África apresentou um tom avermelhado, ao entardecer, típico daqueles que anunciam chuva pesada para o outro dia. Quando amanheceu, o céu estava praticamente escuro por causa das nuvens de chuva que se formaram no mar e se deslocaram rapidamente em direção ao continente. As pessoas se prepararam para as enchentes, comuns em determinadas épocas do ano naquela região.

Mas, não foi isso que aconteceu. Durante uma semana soprou um vento forte, que trouxe nuvens de granizo, que arrasaram as plantações existentes. Muitas pessoas e animais domésticos morreram por causa do tamanho das pedras de gelo que despencavam do céu. A ajuda humanitária não chegava à África porque o vento e o granizo não permitiam.

Enfim, o granizo passou. Apenas as nuvens ficaram rondando as pessoas, que olhavam desconfiadas para o céu, que continuou tomado pela escuridão. Aí começou a chover. Choveu sem parar durante um mês, causando grandes enchentes, deixando tribos e aldeias isoladas e sem alimentos, e propagando doenças sazonais entre seus habitantes. O número de mortos não pode ser contado.

Quando a chuva parou, muitos africanos perceberam que deveriam sair da sua terra e procurar um local onde houvesse comida e tratamento médico. Começaram a marchar em direção ao Oriente Médio e a Europa. 

Foi quando o “Grande Tsunami’ chegou.

Os cientistas não conseguiram rastrear a origem da onda gigante. Parece que ela simplesmente se formou no Oceano Índico e se dirigiu à África. A onda atingiu cinquenta metros de altura e varreu o continente negro, arrastando consigo 70% da população que tinha sobrevivido ao granizo e as enchentes anteriores. 

O resto dos africanos, que conseguiu sobreviver porque tinha alcançado um local seguro, esperou o mar voltar aos seus limites e retornou a terra natal para reconquistar o território. Mas a tarefa está sendo árdua, pelo que se sabe. Alguns sobreviventes de outros locais estão se mudando para a África, para fugir dos problemas de sua região e fazer algo de útil com a vida que têm agora.

“E eu, que queria tanto ser útil para minha aldeia, acabei me enfiando num problema que pode piorar a situação dela. Eu sou um idiota”.

De repente, sinto o silêncio ao meu redor. Eles foram embora! Agora eu posso voltar. Pode ser que ninguém saiba que eu fugi e aí não vou receber nem puxão de orelha.

Eu desço da árvore com cuidado, para não fazer barulho. Quase consigo. Acabo me enroscando com a mochila e a alça da espingarda. Só escuto o barulho do meu corpo, quando caí no chão, ecoando pela mata. Sinto uma dor terrível nas costas. Fico deitado tentando recuperar a respiração.

“Acho que quero ficar aqui para sempre”, penso.

Mas aí eu ouço. Um barulho fraco na moita que está uns dez metros a minha frente. Abro os olhos e me sento rapidamente, apesar da dor. Olho para os arbustos, assustado. É quando vejo um deles aparecer.

“Meus Deus! Como são terríveis!”, penso olhando o homem pestilento a minha frente. Vejo suas costelas salientes, seus dedos com unhas compridas, seus cabelos desgrenhados. A pele é acinzentada. Os olhos são totalmente pretos, vazios e opacos, com a loucura galopando neles.

Ele urra e eu me levanto esquecendo a dor e a espingarda. Começo a correr feito louco, ouvindo o tropel do pestilento atrás de mim. Logo, mais dois se juntam ao primeiro. 

“E agora, para onde eu vou?”, me pergunto, começando a sentir a falta do ar nos meus pulmões. “Por favor, Deus, me ajuda. Eu prometo não desobedecer mais ‘os velhos’ se eu sair dessa. Por favor”. Eu tropeço e quase caio. Vejo por cima do ombro que agora são quatro pestilentos me perseguindo.

Continuo correndo até que eu vejo uma chance de escapar. Quem sabe ainda dá tempo. Não sei como, mas consigo aumentar a velocidade. Chego perto das ‘Duas Pedras’. Um dos portos seguros da minha aldeia. A rocha tem salvado a vida de alguns dos nossos homens. Encontro a escada escondida no mato, apoio ela na beirada da rocha e subo rapidamente, puxando-a para cima, antes que as bestas consigam sequer tocar nela.

Me deito de costas na rocha e tento recuperar o fôlego. Os infectados, quatro metros abaixo, ficam gritando frustrados. Eu remexo a mochila; como um pedaço de pão e tomo um gole de água. O cantil está praticamente vazio. Fico preocupado, mas por hora posso festejar.

Me debruço na beirada da rocha e observo os homens pestilentos. Então eu grito: 

-E aí, seus manés! Ainda não foi dessa vez que eu passei para o time de vocês! – fico jogando pedacinhos de pedra nas cabeças deles.

“É Gabriel, isso sim é uma demonstração de maturidade!”, ouço meu lado responsável resmungando. Então me viro para o lado e tento descansar. Meu cérebro se pergunta quando minha irmã vai descobrir que não estou na aldeia e virá atrás de mim.

É nesse ponto que eu lembro como eu me tornei uma das ‘esperanças’ da minha aldeia. Eu não queria isso, naturalmente; eu queria apenas ser um guri normal, crescer, quem sabe ter uma família, um trabalho e curtir uma velhice bem comum.

Mas não deu para ser assim. Aliás, nenhum guri nascido na época das ‘Cinco Pragas’, ou após esse evento, tinha qualquer possibilidade de ser outra coisa além do que éramos agora. 

Talvez pudéssemos escolher novamente daqui a cinquenta anos, quando encontrassem a cura para os infectados ou a população masculina da América Latina superasse o número deles.

Mas eu acho que isso não vai acontecer, porque, mesmo com todos os cuidados, eu ainda vejo alguns homens mais velhos sumindo na mata e nunca mais voltando. Ou algum conhecido desaparecendo depois de uma caçada. Por mais que as mulheres nos cuidem, sempre ocorre um acidente, ou um desaparecimento. Não só onde vivo. Escuto dizer que essas coisas acontecem nas outras aldeias também. 

Então, para que tanto cuidado? Não sei, mas elas, as nossas mulheres, precisam conservar a esperança. Só assim elas conseguem manter os homens vivos, pelo menos por tempo suficiente para gerarem um novo bebê.

Mas estou me adiantando. Retrocedendo um pouco.

‘A Grande Infestação’ na Europa aconteceu pouco tempo depois dos eventos na América do Norte e na África. 

Durante sete dias, uma cor azul-esverdeada tomou conta do céu do Velho Mundo. Também foi detectado um alto índice de pólen no ar e as pessoas sentiam um cheiro almiscarado, que deixava os animais desnorteados.

Várias espécies de pássaros passaram a migrar para a Europa e infestaram as cidades. Cães e gatos domésticos começaram a atacar seus donos sem nenhuma explicação. Pessoas foram atacadas por enxames de abelhas, vespas, e outros insetos voadores. Surgiram nuvens de gafanhotos, tanto no campo, quanto na cidade.

Centenas de pessoas morreram por causa de alergias respiratórias, de picadas de insetos ou tiveram ferimentos graves por causa do ataque de seus animais. Os casos eram tantos que surtos de raiva se tornaram praticamente incontroláveis.

Enfim, os pássaros começaram a transmitir doenças para os seres humanos. Os ratos saíram dos esgotos com o triplo do tamanho e trouxeram a peste bubônica de volta. Os cães e gatos domésticos se tornaram totalmente selvagens e atacavam qualquer pessoa que cruzasse seu caminho. Houve uma invasão de animais selvagens na Europa com consequentes ataques mortais. E os bichos resolveram ficar na região.

A qualidade do ar piorou. Houve uma proliferação tão grande da vegetação que em poucas semanas a população precisou usar máscaras para respirar, até que chegou o ponto em que isso se tornou inviável.

Era como se uma redoma de vidro tivesse se formado ao redor da Europa. Quem não morria pelas patas dos animais que invadiram as cidades, visto que o número deles aumentou muito ao longo dos meses, morria em decorrência de doenças trazidas pelos bichos, pelas alergias ou pelo acúmulo de monóxido de carbono produzido pela vegetação, que era tão abundante que era impossível controlar sua proliferação.

Mais de 75% dos europeus morreu por causa de uma ou mais dessas situações. E o mais estranho, enquanto a vegetação vicejava e os animais se reproduziam rapidamente, os homens e mulheres se tornavam inférteis. Abortos espontâneos eram comuns.

Gradativamente, as pessoas foram deixando a Europa para as plantas e os animais e se realocando na África e na Ásia, onde tentam ajudar a reconstruir os dois continentes. Quem sabe um dia eles também possam voltar a ter filhos.

O último evento foi ‘A Grande Guerra’ na Ásia. Certo dia, embora o céu estivesse azul, começou a cair uma chuvinha fina, de aparência inocente. Os asiáticos se muniram com seus guarda chuvas e continuaram suas atividades. O chuvisco persistiu por sete dias. As pessoas perceberam que ela tinha um sabor de ferro oxidado. Alguns diziam que tinha gosto de sangue.

Depois disso, os militares decidiram que deveriam mirar seus mísseis em direção aos países vizinhos. Todos dispararam as armas simultaneamente, como se houvesse um acordo prévio. Em seguida todos os países da região entraram em confronto direto. Os civis eram imediatamente convocados. Quem não aceitasse fazer parte dos esforços de guerra era aprisionado ou fuzilado na hora. 

A guerra foi tão intensa e rápida que em pouco tempo a população de toda Ásia se resumiu a 5%, formada quase exclusivamente por famílias, bem como por desertores das tropas. Esse grupo, de alguma forma, conseguiu chegar à região montanhosa do Nepal ou ao Continente Africano.
“Escureceu totalmente e está frio, muito frio. Os carinhas pestilentos ainda estão lá embaixo. Eu preciso dormir um pouco, senão quem vai ficar louco sou eu”.

Acordo ao amanhecer. Estou quase despencando das ‘Duas Pedras’. Me afasto da beirada antes que eu caia e acabe rachando a cabeça na queda; uma morte nada heroica. Olho para baixo. Os homens pestilentos não estão lá. 

“Hora de levantar acampamento”, penso com um pouco de autoconfiança brotando dentro de mim.

Quando pego a escada ela raspa na pedra e faz barulho suficiente para trazer de volta os meus ‘amigos’. Eu olho para o céu. Isso já está perdendo a graça.

-Cadê minha irmã! – Grito como uma menininha. Fico sentado, com a cabeça apoiada nos joelhos, tentando achar uma solução. Olho para meu caderno e leio o que escrevi. Percebo que não contei o que aconteceu na América Latina. 

-Ah! Eu não quero morrer, sabia? Mas quem mandou dar uma de galo e sair sem dizer nada para alguém? – desabafo e volto para meu caderno.

Foi assim na América Latina. Na realidade, começou antes do evento na Europa. Segundo me contaram um dia o céu amanheceu com uma aparência leitosa, como se um recipiente cheio de leite talhado tivesse sido derramado na atmosfera.

Durante o dia, em várias cidades latino-americanas, começaram a surgir relatos de mães assustadas com o comportamento dos maridos. Elas encontravam os homens no quartos dos filhos, praticamente imóveis, apenas olhando para eles.

Depois elas ouviam choros, resmungos, gritos. Saiam em disparada até os quartos, onde encontravam os companheiros mordendo tanto as crianças, quanto os filhos mais velhos. Somente os de sexo masculino. Não eram mordidas que poderiam arrancar pedaços das crias, mas deixavam marcas e dores no local. 

As esposas perguntavam o que estava acontecendo. Os maridos não diziam nada. Seus olhos estavam totalmente escuros, vazios e opacos. Eles deixavam a casa e não voltavam mais. Muitos se matavam se ainda tinham um resquício de sanidade, outros apenas se enfiavam no mato e desapareciam.

Alguns dias depois, as crianças ou adolescentes mordidos acabavam como os pais. Parece que eles transmitiam algum veneno para a corrente sanguínea dos filhos. As mulheres não eram infectadas. Nem homens acima dos sessenta anos. Tinha iniciado ‘A Grande Peste’. 

Em decorrência, muitos homens acabaram se matando com medo de terem a doença e a transmitirem para os filhos. Em poucos anos a população masculina da América Latina diminuiu bastante, seja por causa dos suicídios coletivos, seja por causa do ataque dos homens pestilentos que infectavam os machos sadios, adultos ou crianças. 

Por fim, se tornou primordial deixar as cidades, que se tornavam armadilhas para os homens e crianças. Mas as mulheres e os homens idosos demoraram um pouco a perceber que tinham que proteger as aldeias que surgiram contra os pestilentos ou evitar que os meninos andassem sozinhos. 

Depois de alguns anos, chegou-se a um consenso: as mulheres e os homens não infectados deveriam fortificar as defesas das aldeias, combater os homens pestilentos e ensinar os filhos homens a sobreviverem.

Os meninos só poderiam sair da aldeia quando completassem cinco anos e sempre acompanhados. Nessa idade começavam a receber treinamento de sobrevivência: aprendiam a caçar e a se defender dos infectados, o que consistia basicamente em fugir, enquanto as mulheres e os idosos tratavam de eliminar o inimigo. 

Com o tempo os guris aprendiam a matar as bestas de forma segura. Mas eles só podiam enfrentar os doentes a partir dos quinze anos, o que coincidia com a principal responsabilidade dos homens que chegassem a essa idade: escolher uma companheira para gerar o primeiro filho.

Se fosse menina seria bom. Mas se fosse homem era melhor ainda. Depois disso o menino-homem-pai poderia sair da aldeia com mais tranquilidade e até morrer sem peso na consciência, afinal havia cumprido seu dever. Contudo, esperava-se que ele sobrevivesse mais tempo, para gerar outros filhos. 

Portanto, todo menino era treinado para ser responsável e não sair por aí, como eu, querendo dar uma de macho, colocando as gerações futuras em perigo de extinção.

É óbvio que eu ainda não cumpri meu dever com minha aldeia. É óbvio que se minha mãe ou irmã me encontrarem são e salvo vão me dar uma coça. É ainda mais certo que elas me encontrem infectado e acabem com minha vida miserável sem pestanejar.

Apesar de toda minha ironia, não é fácil viver hoje. Não é fácil ver as coisas que acontecem. Não é fácil ter esperança. Mesmo assim, eu não quero morrer. Por isso, eu preciso sair daqui. Eu quero voltar para casa e ver minha mãe e irmã. 

Mas os homens pestilentos estão aqui embaixo e eu ainda não sou bom o suficiente para matar um deles, quem dirá quatro. Minha mão toca a escada e tenho uma ideia. Eu só preciso afastar eles das ‘Duas Pedras’. Então, quebro a escada conseguindo criar uma ponta aguçada num pedaço de madeira. 

Mas como afastar aquelas criaturas? Será que sangue resolve? Afinal, eles só mordem homens, deve ter algo a ver. Pego meu cantil. Rasgo a palma da mão com a ponta da caneta, o que dói muito, e esfrego meu sangue no objeto. Deixo os pestilentos sentirem o cheiro. Eles enlouquecem. Depois eu jogo o cantil o mais longe possível, no meio dos arbustos.

Os manés correm para o local. Parece que não sou tão burro. Quando eles se afastam o suficiente, eu atiro a lança improvisada para baixo, me penduro na borda da rocha e me jogo em direção ao chão. Sinto uma fisgada no tornozelo.

Mas não tenho tempo para gemer. Eu vejo um pestilento voltar correndo. Levanto e me preparo para atingir o cretino. Acerto o golpe na lateral do crânio dele, que cai esparramado no chão. Eu começo a me afastar, mas a fera se levanta muito rápido. A loucura não conhece limites.

Começo a retroceder, mantendo a visão voltada para o homem que atingi. Ele está vindo em minha direção. Minhas costas se chocam com a rocha das ‘Duas Pedras’. Não tenho saída. Só me resta tentar um último golpe. 

Quando ele chega perto de mim eu faço um movimento de baixo para cima e enfio a ponta da lança na garganta do pestilento. Ele treme alguns segundos e cai sem se mexer.

Eu queria comemorar.  Mas os outros pestilentos estão se aproximando. E a lança está na cabeça do que eu matei. Agora é tarde. “Me perdoa mãe, me perdoa maninha”. E fecho os olhos.

Ouço o pipocar de uma arma. Três balas, três baques surdos contra o solo, três pestilentos mortos.

Elas surgem da mata, junto com dois homens idosos da aldeia, aqueles que são responsáveis pelo meu treinamento. As caras de todos estão fechadas numa expressão zangada. Eu só sinto alívio.

-Mãe! Cris! – eu queria abraçá-las, mas elas não deixam.

Elas sabem que eu estava com medo, mas não me consolam.

- Eu sei. Eu não deveria ter saído sem avisar! Prometo que não vou fazer mais.

-Realmente não vai. – diz minha irmã. – A partir de hoje podes sair com mais frequência. O teste de sobrevivência foi um sucesso. Tens passe livre agora. Resta saber se vais passar no teste de ‘produtividade’. – Cris fala debochando.

-Então foi por isso que vocês não chegaram antes? – eu não tinha vontade de reclamar, nem de replicar o deboche da Cris. Eu entendia que aquilo tinha sido necessário.

-Vamos voltar. Ainda tem a cerimônia da noite. – Minha mãe fala.

Durante nosso regresso Cris me diz que notícias importantes chegaram. Tinham a ver com os nômades da América do Norte. 

-Então aproveita para cumprir bem tua responsabilidade maninho. Em pouco tempo não haverá mais escassez de homens e aí os garotinhos perderão a vez. 

*Este conto foi escrito cerca de dois meses atrás, num surto de hiperatividade (escrevi em apenas um dia) para participar do "Desafio Literário" do Blog EntreContos. Foi realmente muito legal ter participado. A história recebeu várias críticas positivas e negativas, inclusive sobre os absurdos que contém, o que também era proposital. O tema era sobre fim do mundo, me parece que diante deste fato nada pode ser absurdo, pois qualquer coisa pode acontecer. Além do mais, a história é narrada por um adolescente que alega ter informações precisas sobre os fatos, mas terá realmente? Apesar de eu ter consciência de que a história, de fato, precisa ser melhor trabalhada, devo dizer que me diverti muito ao escrevê-la e deixei as possíveis contradições aqui, visando, quem sabe, voltar a ela no futuro e aprimorá-la.

domingo, 26 de janeiro de 2014

OS QATRO

Ela estava muito cansada. Seu corpo suava em bicas. O estômago não parava de protestar por causa da fome. Seu cérebro acelerava e desacelerava ininterruptamente, causando um redemoinho de sensações e pensamentos qe dava ânsias de vômito.
No entanto, ela não podia se dar ao luxo de parar, mesmo qe estivesse caminhando há horas. Apesar da exaustão, da dor nas pernas e braços, no pescoço e nos olhos, naqueles olhos qe o medo tornava ainda maiores e mais escuros, ainda mantinha um passo rápido e constante. 
Ela precisava chegar até sua casa. Lá, poderia descansar, forrar a barriga com algum alimento e encontrar uma relativa segurança, mesmo qe por pouco tempo.
Dobrou mais uma esquina com grande esforço. Se conseguisse manter o ritmo por mais alguns metros estaria salva. Sua casa estava localizada qatro qadras adiante, embora o caminho até lá não fosse linear. Ela estava fazendo um percurso diferente do qe costumava realizar, embora mais demorado. Talvez assim tivesse uma chance de chegar a sua residência antes qe eles a alcançassem.
Novamente ela tentou entender porqe eles faziam isso, mas não conseguiu. Já tentara de tudo para se livrar daqela perseguição. Tentara conversar com eles, depois fizera denúncias, com direito a retrato falado, fornecimento de endereços a polícia, mas esta ou não localizava aqeles que a perseguiam ou não se esforçava suficientemente para isso, o qe era o mais provável. 
A situação já durava dois anos e nenhuma solução foi obtida, apesar do medo qe sentia e dos ferimentos qe surgiam em seu corpo como prova dos ataqes. Por isso desistiu de procurar as autoridades. Preferia sofrer sozinha a ter qe ouvir o qe diziam.
Já era noite. Havia escurecido tão rapidamente qe ela nem percebeu, até porqe, além do esgotamento físico, estava usando óculos de sombra. Seus olhos andavam muito sensíveis a qalqer tipo de luz. Ela usava os óculos inclusive dentro casa, fosse dia ou noite. 
Sua cabeça estava coberta com o capuz do moletom qe usava por baixo de uma jaqeta de brim puída nos cotovelos e nos punhos, qe levava seguidamente a boca para não ficar mordendo os dedos. Usava calça jeans e um par de tênis “AllStar” velho e sujo, mas confortável. 
Devido à situação qe enfrentava estava usando a mesma roupa há qatro dias. Ela se sentia imunda, nojenta, com cheiro de bicho porco. Qeria um banho com urgência.
Já era noite. De agora em diante, qalqer coisa poderia acontecer. E qando dobrou uma esquina ela teve a confirmação desse fato. Estava há duas quadras de sua casa. Parou num canto escuro para identificar o próximo ponto alternativo do caminho. Mas percebeu algo estranho iluminado pela luz de um poste justamente no local que pretendia alcançar.
Lá estavam eles, os qatro elementos que a vinham perseguindo há cerca de 24 meses. Estavam totalmente imóveis, como estátuas seculares, formando uma fila, lado a lado, seus olhos brilhantes de escuridão: um homem, duas mulheres e um ser qe ela não conseguia definir a qe sexo ou gênero pertencia. 
Era tenebroso vê-los, mesmo visto a distância, mesmo sem saber como explicar o como ou o qanto. Seus trajes eram estranhamente familiares. Ela sentia que já tinha visto aqelas roupas em algum lugar.
A garota colou instintivamente o corpo contra a parede da casa da esqina, onde se propagava um negrume pior qe o breu. Qeria acreditar qe eles não tinham visto sua figura magra e frenética pela indecisão e medo em qe vivia. Observou os qatro indivíduos. Estavam de cabeça baixa e nada falavam entre si, embora ela qase conseguisse ler seus pensamentos. Sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
“E agora o qe eu faço?”, se perguntou aflita. “O qe eu faço, o qe eu faço, o qe eu faço”, ecoou enquanto estalava os dedos repetidamente. Qando produziu o último estalo qe seus dedos poderiam suportar, uma das figuras levantou a cabeça e olhou de forma fulminante para o lugar escuro qe ela estava usando como camuflagem.
A moça sentiu o elemento esboçar um leve sorriso e cutucar a companheira ao lado, qe levantou a cabeça e reproduziu o gesto até qe o qarteto inteiro passou a mirar seu esconderijo.
Ela apertou os olhos com força. Talvez eles sumissem como já havia ocorrido antes. Qando levantou as pálpebras, a decepção cobriu seu corpo como um manto grudento e sufocante. Aqelas criaturas ainda estavam lá, agora gargalhando do seu desespero e se empurrando exaltados, porque sabiam como ela se sentia. 
Eles farejavam o cheiro de medo, que seus poros exalavam, como cães prestes a entrar numa rinha. Então, um silêncio nefasto surgiu entre as aberrações e resvalou pela rua. 
Os qatro olharam para ela até perfurarem sua alma. O primeiro começou a caminhar lentamente em sua direção, sendo seguido pelos companheiros, mantendo a distância de três passos entre si. Qando eles faziam isso a sensação de desconforto a pressionava como um torno: ver um tigre saltando sobre o corpo dela já era ruim; três, então, acabavam com sua sanidade.
Ela olhou para os lados, apavorada. Descobriu as luzes fracas duma lancheria barata a meia qadra de onde se encontrava. Não raciocinou. Apenas saiu em disparada até o lugar, embora tivesse qe passar por baixo das luzes dos postes, revelando totalmente sua presença física para seus inimigos.
Enqanto corria, espiou por cima do ombro. Notou as sombras profanas começando a correr. E eles se aproximavam muito rápido. “Oh, Meu Deus! Eles qase voam!”, pensou tropeçando por causa disso. Mas recuperou o eqilíbrio automaticamente, alcançando a porta da lanchonete antes do qe esperava. Entrou sem olhar para trás.
As pessoas observaram a figura desgrenhada, qe se jogou de supetão para dentro do bar, intrigadas e, ao mesmo tempo, entediadas pelo efeito da bebida ou qalqer outra coisa qe pairava no ar e deixava o ambiente meio velado. Depois voltaram indiferentes ao qe estavam ou não fazendo.
Ela procurou e encontrou a mesa mais distante da porta, localizada num canto escuro da lancheria. Sentou-se e ficou olhando a janela irreqieta. As sombras, com seus corpos pesados de uma maldade que se espalhava pela rua, passaram correndo: a qarta, a terceira, a segunda e a primeira... a primeira parou diante da vidraça por alguns segundos. Ficou perscrutando e farejando o ambiente baço.
Qando a garçonete chegou a sua mesa para perguntar sobre seu pedido, aqela coisa fixou os olhos no canto em qe ela estava. Assustada com sua aparência a atendente perguntou se a cliente estava bem. Ela olhou a garçonete de relance e apontou a vidraça com um dedo trêmulo. A criatura sorriu de forma maligna e sumiu repentinamente no exato segundo que a funcionária voltava os olhos para o lugar apontado.
- Moça, não tem nada lá. – a garçonete falou, tentando acalmá-la. Disse qe traria um copo de água porqe ela parecia sedenta. Ela concordou, pois era verdade. Antes da atendente ir, a moça fez seu pedido. Sabia qe não conseguiria aguentar mais um segundo sem colocar algo sólido na barriga.
Ela devorou a comida rapidamente, qase como um animal. Pediu mais uma torrada, porqe ainda não tinha saciado a fome de dois dias, e uma garrafa de água mineral para levar. Qando terminou, olhou a janela por algum tempo. 
Levantou-se da mesa e se aproximou da porta de saída. Espiou a rua pela vidraça. Nenhum sinal das sombras qe a atormentavam há dois anos. Vinte e quatro meses de correria, sons qe não conseguia saber de onde vinham, de machucados espalhados pelo seu corpo devido aos ataqes qe sofria, de fones enfiados nos ouvidos com música tocando no último volume, porqe, qando andava nas ruas e os via na outra calçada, gritando seu nome, palavras ofensivas e juramentos de qe ela iria acabar se juntando a eles, era insuportável demais.
Dois anos desde qe chegou em casa e encontrou o seu gatinho na porta dos fundos, com o pescoço torcido e cortes, cicatrizados ou ainda abertos, espalhados por seu corpinho. Ela teve qe enterrá-lo no fundo do pátio, chorando sozinha, pois perdera seu único amigo. Para seu horror, no local encontrou a sepultura de alguns ratos, outro gato e um esqeleto qe não conseguiu identificar a qe espécie pertencia, embora desconfiasse.
Precisou mudar de residência, indo morar na casa velha de uma periferia afastada e decadente, onde tentava chegar agora. Sabia qe lá estaria bem, poderia dormir e esqecer por um tempo aqele horror em qe estava vivendo.
Então, tomou coragem. Abriu a porta da lanchonete com brusqidão e disparou rua afora. Não ouviu nenhum barulho estranho, nenhuma rizada grotesca, nenhum som de passos correndo atrás dela. “Acho qe eles desistiram por hoje”, pensou um tanto aliviada, mas sem criar grandes esperanças.
Chegou em casa com os nervos despedaçados. Pelo menos estava salva da malevolência dos seus perseguidores. Abriu a porta, praticamente saltando para dentro do recinto, fechou-a, passando a chave nas duas fechaduras, prendendo o pega-ladrão e colocando as barras atravessadas na parte superior e inferior da porta. Tinha certeza qe eles não conseguiriam arrombar a entrada dessa vez.
Encostada na porta ela percebeu qe há qatro dias eles a estavam perseguindo muito mais acirradamente qe nos dois anos anteriores. Contudo, a caçada ficou pior nos dois últimos dias, depois qe ela tinha voltado do médico.
Por fim, a moça se jogou no sofá velho qe estava na sala e onde, muitas vezes, passava a noite porqe tinha medo de dormir sozinha no seu qarto. Este tinha uma janela ampla, sem persianas. Somente umas cortinas velhas e gastas impediam qe a privacidade fosse totalmente devassada por qalqer vizinho mais curioso. A luz da lua entrava sem pudor no ambiente, como se qisesse desnudar a força seu corpo, criando sombras nos cantos qe a deixavam terrivelmente assustada.
A guria somente dormia no dormitório qando chovia. Gostava de ver os pingos batendo contra os vidros da janela, fazendo plic plec no telhado, molhando as folhas da antiga figueira qe fora plantada pelos anteriores proprietários da casa no quintal amplo. 
A chuva lhe dava paz. Eles nunca apareciam em dias chuvosos, certamente porqe não havia cantos escuros onde eles pudessem se esconder e ficar a espreita dela.
Enfim, ela adormeceu. Um sono entremeado de dor e medo, com visões de feras e sangue manchando as paredes da casa e o piso. Acordou repentinamente, soerguendo o corpo molhado de suor, no exato momento em qe ela ia soltar um grito, enqanto o sangue empoçado escorria em direção aos seus.
Comprimiu os olhos com força, contendo o grito qe fez força para repercutir na sala. Ela detestava gritar desde qe era menina. Sempre aguentara no osso do peito várias coisas sem soltar um gemido seqer. Diziam qe era orgulhosa por causa desse seu hábito. No fundo, ela simplesmente não conseguia externa nada do qe sentia, mesmo nas ocasiões qe um berro faria bem a alma.
Balançou a cabeça para afastar esses pensamentos do cérebro acelerado. Era mais tarde do qe supunha, como pode comprovar ao olhar o relógio de parede. Jogou os pés para fora do sofá, sentando-se e apoiando os braços nas pernas, devido a tontura que sentiu.
“Eu sei do qe to precisando”, pensou, enqanto se levantava e tentava firmar o tronco sobre as pernas trêmulas e os pés trôpegos. Cambaleou até a porta da cozinha e apoiou-se no batente, olhando para o interior daqele cômodo semiescuro.
Sobre a mesa uma caixinha branca cruzada por uma faixa preta. Infelizmente, precisava do conteúdo dela. Rumou até a geladeira para pegar água. A sede persistia e a água ainda seria necessária para engolir as bolinhas. Abriu o refrigerador, mas não tinha nada dentro, líqido ou sólido.
“Preciso comprar comida”, pensou desanimada. Então, lembrou-se da água qe trouxera da lancheria e deveria estar na sala. Começou a se dirigir para lá, tonta e experimentando uma leve ânsia de vômito, qando sentiu um cheiro estranho.
Mirou o chão. Havia uma poça enorme. Abaixou-se e tocou na umidade que via. Era grudenta, com um cheiro de ferro oxidado, mas não conseguia identificar a cor ou o qe seria. O mal estar aumentou. 
Resolveu limpar a bagunça depois. Levantou-se e foi até a sala, pegou a garrafa de água e voltou para a cozinha, a vontade de expelir algo aumentava dolorosa e gradativamente. Tropeçou numa cadeira perto da mesa. Firmou as mãos nesta para não cair, sentindo dor na canela qe se enroscou com a cadeira.
Foi quando ela viu: a porta dos fundos estava escancarada, permitindo qe a luz da lua incidisse sobre a poça no chão, uma poça vermelha como sangue.
Ela caiu sobre os joelhos, as mãos desabando sobre o líquido no piso, e vomitou, uma vez, depois outra, encima do sangue coagulado. Qando não restava mais nada no estômago para ser rejeitado, aprumou o corpo, levando as mãos grudentas aos cabelos. Ficou sentada alguns segundos, se balançando desesperada.
Por fim, rastejou até a porta aberta. Pretendia fechá-la, mesmo correndo o risco de descobrir qe eles estavam dentro da casa. “Qe me matem de uma vez”, pensou com raiva. 
Nunca chegou a fechar a porta. 
Sobre o tapete de entrada ela viu algo branco, felpudo e imóvel. O pescoço está torcido e cortado de uma forma bizarra. Ferimentos se espalham pelo corpinho, os olhinhos verdes fixos numa expressão de medo, dor e incredulidade.
-Puff! - a garota exclamou em agonia. –Puff, me desculpa. Olha o qe aqeles deesgraçados fizeram. Puff! – ela repete o nome diversas vezes, aconchegando o gatinho morto em seu colo, em meio às lágrimas qe escorriam por seu rosto pálido e encovado.
Pegou o tapete com cuidado. Puff estava morto, seu único amigo, seu último consolo em meio ao caos em qe vivia. “Morreu sendo torturado por qatro aberrações da natureza”, ela pensou com raiva, caminhando para o fundo do qintal onde, como já havia acontecido na outra casa, iria enterrar o qe restou do seu bichinho de estimação.
Ela parou no canto mais escuro do terreno. Ali havia terra fofa porqe ela pretendia cultivar um peqeno jardim. A pá, com a qal a guria remexera a terra antes da sua fuga alucinada, ainda estava encostada no muro.
Pegou a ferramenta e começou a cavar. Depois de alguns minutos de trabalho, parou e olhou para o tapete. Ajoelhou-se, desembrulhou o gatinho e alisou seu pelo. Acabou de abrir a cova com as mãos, sujando a cara, misturando o sangue em seu cabelo com terra, o qe deixou seu rosto asqerosamente manchado.
Retirou mais um pouco de terra do buraco. Encontrou a ponta de um tecido. Parou um instante a tarefa de coveira e olhou desconfiada para o pano encardido, mas qe já havia sido imaculadamente branco. Foi abrindo um espaço maior em volta daqela ponta até formar um qadrado qase perfeito. Era um lenço.
-Mas o qe? – murmurou baixinho, observando o local, com um misto de curiosidade mórbida e medo daquilo qe poderia estar debaixo do pano. Notou qe num dos cantos do lenço havia uma anagrama bordado: “AB”.
Lutou com a vontade de sair dali correndo e deixar tudo para trás, fugir para um lugar isolado, silencioso e nunca mais voltar. Contudo, a necessidade de saber o qe estava acontecendo, e a curiosidade natural qe tinha desde criança, venceram a batalha. Ela puxou a ponta do lenço vagarosamente, até descobrir a terrível verdade.
O horror tomou conta dos seus olhos, da sua boca e ouvidos e roubando sua voz.
Debaixo da terra fofa, do lenço encardido, um rosto contorcido pela dor e surpresa. Uma boca aberta, deixando expostos dentes qe se arreganhavam num esgar qe implorava misericórdia. No pescoço outra boca se abria, formando um qase sorriso, como a debochar da brutalidade com qe a vida daqela mulher havia sido ceifada.
-Oh! Deus! Minha irmã! – ela repetiu algumas vezes, sendo invadida por uma sensação de entorpecimento. E alisava aqele rosto sujo de terra e sangue, num desespero cruel, qe tornava impossível sentir alguma dor.
-Foram eles, não foram? Eu te avisei. Eu sei qe foram os monstros. Sinto muito. Desculpa. Eu já devia ter acabado com eles. A culpa é minha, é minha, é minha...- dizia para o cadáver de olhos esbugalhados.
A garota ouviu um som às suas costas. Virou-se rapidamente e os viu, saindo do interior da casa e parando perfilhados perto da porta. A luz da cozinha incidia por detrás dos qatro, escurecendo ainda mais suas caras terríveis, ressaltando o brilho perverso dos seus olhos e o contorno de suas bocas vorazes.
Ela conseguiu ver em detalhes as roupas qe eles vestiam, identificando as mesmas finalmente: todas deveriam estar em seu guarda roupa. Pelo visto, a gangue acreditavam qe tudo qe sua presa possuía também pertencia a eles. 
Enfim, devido a proximidade, agora ela também conseguia descrever as criaturas.
O líder era um homem. Sobre os cabelos, levemente compridos e de tom castanho, ele usava um chapéu de abas largas, com uma delas caindo parcialmente sobre o rosto, lhe dando um ar mais amedrontador ainda. Seu corpo era coberto por um capote de couro, uma camisa azul onde se via uma grande mancha escura, uma calça jeans batida, um cinto onde pendurava a bainha de uma faca, e botas pretas de couro e bico fino com ponteiras de aço. Ele media aproximadamente um metro e oitenta.
A mulher a seu lado deveria ser sua parceira e a segunda em comando. Trajava um vestido vermelho acima dos joelhos, qe valoriza seu corpo esbelto, e sapatos de salto alto. Seu cabelo negro, liso e comprido contrastava com a pele extremamente branca qe parecia cintilar a luz da lua. Sua boca cheia esboçava um sorriso irônico. Seus dedos terminavam em unhas qe pareciam garras, embora não fossem excessivamente longas. A mulher se postou ao lado do chefe tão imóvel quanto uma estátua.
A segunda fêmea era mais baixa qe a primeira e um tanto roliça. Seus cabelos claros batiam na altura dos ombros, eram levemente encaracolados e estavam desgrenhados, como se ela vivesse puxando e enroscando os fios. Vestia uma calça de brim rasgada em alguns pontos, uma camiseta com uma frase em inglês, e tênis ‘AllStar”. Ela se balançava um pouqinho, como se estivesse impaciente, enqanto segurava a mão da primeira mulher. Parecia uma menina desamparada e, ao mesmo tempo, a fúria em pessoa.
Não era possível distinguir a qe sexo pertencia a última criatura. Tudo em seu ser era andrógeno, desde o corte dos cabelos ruivos até as roupas qe vestia. Esbelto, flexível, e mais alto que o líder, tudo nele ou nela (qem sabe ambos?) era voraz e serpenteante. Talvez sua boca fosse a maior que ela já vira em sua vida. Nenhuma palavra conhecida seria capaz de descrever corretamente essa aberração. Isso a tornava a mais assustadora de todas. Tudo indicava qe este último ser poderia devorar o qe encontrasse a seu redor: sem medo, sem culpa, sem compaixão.
Ela começou a recuar, arrastando seu corpo dormente com a ajuda dos pés e das mãos, até qe suas costas bateram contra o muro no fundo do pátio. Não tinha mais para onde ir. Limitava-se a balançar a cabeça em negação, porqe agora sabia que não restava nada qe pudesse fazer.
O líder sorriu. Com um comando imperceptível ele determinou qe todos começassem a andar vagarosamente na direção dela. Um passo de cada vez. Repentinamente começaram a correr. 
Os movimentos feitos por seus perseguidores desencadeou um flash na mente da guria, levando-a a descobrir como sua irmã morreu. Foram eles, os qatro.
As aberrações haviam invadido sua casa alguns dias atrás, durante uma visita de sua irmã. Ambas estavam discutindo como sempre acontecia. Os qatro surgiram dos cantos escuros da casa, um a um, enqanto ela tentava avisar AB da presença deles. Sua irmã não acreditou ou não os viu a tempo, como ocorria desde que a sua desgraça começou.
O qarteto riu, debochando do aspecto e do pavor de AB. Depois saltaram sobre sua irmã e bateram nela até qe seu corpo tombasse no chão, sangrando. AB implorava para qe aqilo parasse.
O líder se ajoelhou ao lado dela e puxou a faca da bainha, encostando o gume no pescoço da sua irmã. Tapou a boca dela e foi cortando sua garganta lentamente. Uma mancha se fixou na camisa daqele ser grotesco e uma poça começou a se espalhar pelo piso da cozinha.
Mas foi nas mãos da garota perseguida qe o sangue de AB grudou. Foi nela qe a violência deixou marcas arroxeadas na pele dos braços, peito e pescoço.
O flash terminou em frações de segundos. As aberrações se aproximavam cada vez mais. Agora corriam sobre suas mãos e pés, feito macacos enraivecidos. 
Os qatro saltaram sobre ela ao mesmo tempo, antes qe pudesse gritar por ajuda.
Eles a devoraram em qestão de minutos e sumiram. Sumiram para sempre nas trevas existentes entre a cova descoberta e o muro do qintal.
Uma hora depois uma pessoa se levantou com dificuldade. Suas roupas eram de couro, jeans e seda vermelha. Seus cabelos possuíam mexas de várias cores. Seus lábios eram vermelho sangue e os olhos profundamente escuros e perversamente brilhantes. 
A pessoa olhou para a cova e o rosto qe nela se encontrava. Com a biqueira de aço da bota empurrou um pouco de areia sobre a cara desfigurada de AB, rindo um risinho baixo e frio.
Por fim, começou a caminhar em direção a porta da cozinha, percorreu o interior da casa, abriu a porta da frente e saiu para a madrugada qe estava se transformando em dia.
Agora, mais um monstro estava caçando na cidade.