terça-feira, 9 de junho de 2015

A VISITANTE

Hoje acho que eu vou receber uma visita, minha filha. Por isso, vou esconder todas as fotos. Sabe, eu tenho medo. Já me roubaram algumas, outras estragaram. Então, tive que começar a tomar precauções.

Eu não entendo porque as pessoas fazem essas maldades, sabe, minha filha, pegar coisas que não são suas, ou destruir, principalmente quando se trata de uma coisa que parece uma bobagem, mas que pra quem tem ou guarda é muito importante.

Fotos são assim, menina, acredita na minha experiência. Fotos são importantes porque nos lembram das coisas que a gente viveu. E servem pra refrescar a memória quando já estamos perdendo ela, como ta acontecendo comigo.

É por isso que, às vezes, eu pego meus álbuns e fico olhando os retratos que têm neles. Me lembram da minha mãe, dos meus tios, dos meus amigos, do meu pai... não do meu pai, não, porque a maioria das fotos dele já foi roubada ou estragada por uma criança daninha, filha de uma vizinha, que, de vez em quando, vem aqui e faz uma bagunça terrível, inclusive mexe nos meus retratos e estraga os que pega.

Eu já conversei com a mãe dela, mas não adiantou nada, nada mesmo. A mulher não acredita que sua criança (tão inocente, parece um anjo, com seus olhos verdes, seu cabelo escuro, sua pele branca) possa fazer uma daniesa dessas.

Mas ela faz, minha filha, ela faz.

Eu posso estar velha, mas caduca, ainda não. Por isso, eu sei que ela faz isso.

Mas como eu tava falando: eu fico olhando as fotografias da parentada, que já morreu, ou ainda vive, ou a pouco nasceu, e me dá uma dorzinha no peito, misturada com alegria. É tanta gente que eu fico tentando imaginar como a família cresceu tanto e eu nem percebi. 

Logo eu, que sempre fui muito atenta pra esses registros familiares.

E ajuda com a solidão sabe? Dá pra gente ver que não foi sempre assim sozinha e que as pessoas só não aparecem mais seguidamente ou porque já morreram ou porque não têm tempo mesmo.

Somente os velhos têm tempo hoje em dia. E olhe lá, porque muitos estão bem ativos. 

Eu não, porque... bom, eu não sei bem o porquê, só sei que é difícil pra mim sair dessa casa que dizem que é minhas, mas sinto que não. 

Às vezes eu estranho essa casa, tão cheia de móveis e tão vazia de lembranças. Eu não me recordo muito das coisas que vivi aqui, menina. E quando quero lembrar me dá um aperto na cabeça como se me dissessem que eu não deveria fazer isso. 

Mas não é só isso que a gente tem no final da vida? Lembranças boas ou más?

Não sei, mas penso que, mesmo quando é ruim, melhorar é lembrar do que ficar em dúvida. Depois mudo de ideia. Tenho mudado muito de ideia ultimamente. Isso me deixa constrangida, mas só conto isso pra ti, porque tu é uma menininha muito querida e bonitinha, sempre vem me visitar, com esse teu sorriso bonito, teus olhos verdes, teus cabelos escuros e tua pele clara.

Mas as fotos, claro, as fotos provam que eu sempre morei aqui. Mas quando chego nesses retratos eu pulo. Não gosto do que sinto quando vejo essas fotografias, porque a casa continua a mesma, mas as sombras nos cantos me assustam muito. Parece que tem alguma coisa escondida neles que vai saltar sobre mim e me sufocar até eu morrer sem poder pedir ajuda.

Eu não tenho medo da casa, sabe. Tenho medo é das fotos dos seus cômodos e dos cantos escuros que aparecem nelas. Quando está tudo iluminado e não tem nenhuma foto da casa por perto, fico tranquila. Chego a ronronar como um gatinho satisfeito.

Mas ai surge a filha da vizinha, tira todas as fotos do álbum e me deixa com raiva, essa menina esquisita de pele clara, cabelos negros e olhos verdes. Ela me mostra as fotos e fica rindo porque não consigo me mexer. 

Então ela guarda essas fotografias tristes e começa a estragar as bonitas por pura maldade. Eu não consigo fazer nada pra ela parar, fico só dizendo: “Não faz isso, minha filha, não faz isso minha filha”.

É quando eu olho para o espelho.

Esse mesmo de onde tu me miras e que me reflete enquanto escovo, antes de dormir, meus cabelos escuros quase brancos, minha pele clara enrugada, meus olhos verdes baços. Esse espelho onde te vejo, com tua pele branquinha, teus olhinhos verdes luminosos de esperança e teu cabelinho liso e escuro brilhante, tão pequeninha e inocente.

Acho que essa noite a filha da vizinha não vem, menininha. A visita vai ficar pra outro dia. Deve ser porque tu ta aí no espelho. Então, nenhuma foto será estragada, nenhum canto escuro saltará sobre mim. 

Acho que dormirei em paz essa noite, minha filha. Graças a Deus.