sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

ANDRES


TRECHO I*

Br 392. Sol achatando a paisagem. Nada se movimenta no trevo de entrada para a cidade de Pelotas. Apenas os carros e caminhões passam voando, como vacas apressadas, tocadas pelo peão, para tentarem alcançar alguma fonte de água antes que um calor incomum as matem.
Os veículos querem chegar a Rio Grande o mais rápido que seus motores permitem, levantando uma poeirama que entra pelos olhos, boca, ouvidos roupas e qualquer lugar onde o corpo possa acomodá-la. Os condutores não suportam mais a quentura dentro dos automóveis.
Andres está sentado embaixo da ponte interditada que cruza o Canal São Gonçalo. Uma gota de suor, gosmenta e desconfortável, escorre pelas suas costas. Ele tenta afastar as moscas que o incomodam, sem sucesso. Depois de alguns dias de caminhada, já que não queria gastar dinheiro com a passagem, ele está quase chegando a nova terra de oportunidades do RS. Antes havia sido Porto Alegre, agora era essa cidade no extremo sul do estado, que havia ficado esquecida por Deus por um grande tempo.
Ele está sentado à sombra da ponte, perto de uns arvoredos que têm por ali e de um pequeno braço de água regado pelo Canal São Gonçalo. Alguns pescadores ainda saem de barco por este córrego para tentar pescar alguma coisa no rio, mas está cada vez mais difícil. Tudo está poluído.
Mais adiante ele vê uma série de casebres construídos por catadores de lixo. São feios, desengonçados e se mantêm parcamente em pé. Um vento mais forte bem poderia derrubá-los, mas estranhamente não derruba, embora, as vezes, o rio, na enchente, os inunde.
Os pátios dos barracos estão atulhados da porcaria jogada fora por aqueles moradores mais abastados da cidade considerada a 'Princesa do Sul'. Alguns anos antes o governo municipal havia retirado os catadores do lugar, debaixo de muito choro e sofrimento. Mas eles voltaram.
Eles sempre voltam.
Andres continua sentado, tentando escapar do sol causticante do meio dia de uma sexta-feira qualquer. Só pensa em alcançar Rio Grande. Acredita que ali conseguirá um emprego. Dizem que a cidade está precisando de bons pedreiros, marceneiros, carpinteiros e até empregados domésticos, já que, com o polo naval, ninguém mais quer essas vagas.
Ele carrega uma mochila com duas peças de roupa, um par de sapatos um pouco mais novos do que os que estão em seus pés sujos e, escondido nas cuecas, certa quantia em dinheiro (envolta por uma sacola plástica, que a bem da verdade, por causa do calor, está lhe incomodando muito), que ele juntou para poder passar os primeiros dias na cidade até ver se consegue um bico.
“Talvez o primo João me ajude a achar algum biscate. Pelo menos ele prometeu, embora não tenha oferecido pouso. Mas pra isso deve ter algum albergue no Rio Grande”, ele pensa.
Será?
Andres toma um gole de água e come mais um pedaço da recheada que comprou num bar duvidoso num boteco na entrada de Pelotas. Ele espera que nada esteja estragado porque a aparência do lugar não era das melhores. Passa a mão na testa, novamente, para secar o suor que se alojou ali e o está incomodando. Fecha os olhos e decide dormir com a cabeça apoiada na mochila até o calor diminuir um pouco, aproveitando uma grande moita para se proteger de alguém mal intencionado. Ninguém o enxergaria da rodovia ou da estrada de terra que passava perto do local onde se sentara. Precisava descansar, mesmo sabendo que ele tinha optado pela andança para chegar ao seu destino.
“Senão não chego onde pretendo”, ele raciocina de forma prática, afinal já caminhou um tantão somente hoje. E ele sabe bem o que quer. Agora que falta pouco ele não vai arriscar não chegar à cidade vizinha.
Andres tem 30 anos. Não é muito alto. Tem cabelos castanhos escuros e olhos da mesma cor. Seu físico é normal, embora ele seja bem resistente porque sempre trabalhou em serviços pesados. Nos três últimos dias ele se tornou um andarilho na tentativa de alcançar uma melhor oportunidade, arranjar um bico qualquer nem que seja somente temporário, porque já estava saturado da sua cidade natal onde nada acontecia.
Ele sabia ler e escrever bem, mas não tinha o ensino fundamental completo. Não falava inglês. Era um pouco tímido. Nunca tinha casado, só vivido junto com uma moça por um ano. Teve sorte porque a menina não engravidou. E teve azar porque ela preferiu ficar com o playboy que batia nela todo dia do que com o cara honesto, mas pobre que ele era. Mas ele não resmungava. Não tinha tempo para essas frescuras.
Andres era um cara legal. Bom amigo. Bebia um pouco, era verdade, mas não incomodava ninguém. Nunca tinha cheirado nada além de um Patchuly de segunda categoria. Era dedicado a sua mãe. Seu pai era morto há dez anos. Não era um indivíduo totalmente bom, mas também não era inteiramente mal.
Ele era um cara comum. Era filho único. Sua mãe ficara cuidando da casa em que moravam até que ele pudesse buscá-la para morar em Rio Grande ou voltasse porque o sonho não teria se concretizado. Ela se conformaria com qualquer coisa, desde que o filho ficasse bem.
Finalmente Andres adormeceu. Sonhou sonhos verdes, enquanto tudo mudava.

TRECHO II

O andarilho não conseguia enxergar as coisas com total clareza. Sua visão era meio embaçada e cinza. Não sabia desde quando via o mundo assim. Não se lembrava de nada. E apenas sentia essa necessidade de ir se arrastando pela estrada, devagar, sem desejar outra vida. Só uma coisa o fazia sentir um frenesi incontrolável.
Isso ocorria sempre que, ante seus olhos secos e poeirentos, surgia alguma coisa que se movimentava e tinha uma cor avermelhada e quente correndo dentro dela. E se a coisa ainda tinha um cheiro diferente, então ele tinha certeza que deveria agir com rapidez e alcançá-la.
Seu instinto dizia que se não fosse assim a coisa avermelhada e tão deliciosamente quente sumiria o mais rápido que pudesse e ele ficaria com aquela fome insaciável doendo em seu estomago e intestino, embora, na realidade, mesmo devorando várias coisas quentes, vermelhas e apetitosas, aquela sensação nunca ia embora.
Mas o andarilho não pensava nisso. Só sabia que tinha essa ‘fome’ e precisava continuar andando e encontrando qualquer coisa com a cor certa, que fazia o cinza desaparecer totalmente de sua visão. Então, ele enfiava os dentes nela e pronto. Nada mais importava, até que a coisa terminava e tudo recomeçava novamente.
 Ele estava andando lentamente por alguns quilômetros já fazia alguns dias, embora para ele a noção de tempo não importasse. O sol, a pino, havia torrado seu corpo, mas ele não havia ficado vermelho das queimaduras. Na realidade, a tonalidade corporal deste que caminhava incansavelmente, estava se tornando uma mistura de cores: uma cor meio esverdeada no tórax e nas costas, como se algo ali estivesse começando a apodrecer, uma cor de hematoma no rosto, como se ele tivesse sido esmurrado várias vezes, e em suas mãos e pés, que pareciam ter ficado presos por um longo período e sua circulação tivesse sido cortada nas extremidades.
Seu cheiro estava petrificado e era totalmente desagradável. Se ele mesmo pudesse sentir o ‘perfume’ que exalava teria vomitado na hora, pois era uma mistura de peixe podre, vegetação em decomposição, caixa de areia de gato e sangue coagulado. Mas ele não sentia nada disso e, por isso o cheiro não causava nenhuma sensação estranha ao seu nariz. Seu olfato estava comprometido para o resto de sua vida.
Somente o cheiro das coisas quentes e avermelhadas era importante. No entanto, ele já estava alcançando um nível inumano de raiva porque já fazia algumas horas que ele não sentia esse odor, apesar de ver outros andarilhos caminhando lentamente e de forma desconsolada, como ele, pela estrada. Mas elas não tinham o cheiro especial, portanto, ele não ligava para elas ou para sua companhia.
Apena quando algum dos companheiros de viagem tentava alcançar a mesma coisa vermelha que ele via antes dos demais era que a presença dos outros se tornava incômoda. Ai era inevitável. Ele iria lutar com quem andava na estrada com todas as suas forças, a custa de alguns rasgões em sua carne ou de amputações no adversário, porque ele era um dos mais fortes que andavam por aquelas bandas. Poucos viajantes se comparavam em força com ele, talvez por isso, seu corpo não tinha muitos estragos.
Vez por outra ele parava no acostamento da estrada de asfalto e ficava alguns minutos se balançando, como se estivesse indeciso sobre se devia continuar no caminho ou não. Na verdade, ele estava tentando ouvir algum barulho que indicasse que direção deveria tomar para encontrar as coisas vermelhas e saciar um pouco seu apetite vertiginoso. Mas os barulhos estavam cada vez mais raros.
Será que estaria ficando surdo? Pouco importava, desde que visse a cor e sentisse o odor certo.
Aos poucos ele se distanciou de um pequeno grupo que perambulava pelo meio da estrada. Eles haviam entrado naquele mesmo estado em que ele estava alguns minutos antes. Estavam tentando ouvir. E isso foi o erro desse grupo. Acabaram atropelados por um objeto, que andava mais rápido que eles, era duro e enorme, que esmagou seus corpos contra o asfalto escaldante, esparramando suas tripas e seu sangue coagulado pela estrada.
O andarilho escapou por sorte. Ele estava no acostamento e alguns objetos duros, parecidos com o que atropelou o grupo, mas menores, repletos de coisas sem sentido para ele (roupas, brinquedos, telefones, sapatos, pedaços de braços e pernas), estavam atravancando o caminho.
Quando a massa móvel, dura e enorme atropelou o grupo, ouviu-se um urro humano de vitória, mas foi breve, porque as massas do mesmo tipo, mas menores, e estavam paradas, acabaram se chocando com seu irmão maior. Foi um desastre que ele viu impassível. O objeto tombou de lado fazendo um ruído de ferro contra ferro ensurdecedor.
O andarilho olhou para o objeto totalmente destruído sem esboçar a menor reação. Foi quando uma coisa saiu aos trambolhões de dentro do artefato duro, frio, sem cor e cheiro. E o melhor: essa coisa saída do emaranhado de ferro tinha uma cor avermelhada e um cheiro diferente do seu.  
A coisa apetitosa caiu no chão gritando e se contorcendo, enquanto a cor vermelha esguichava de uma parte do seu corpo.
O andarilho urrou e apressou o passo em direção a cor que besuntava seus olhos opacos, com braços estendidos como armas apontando para o alvo. A coisa gritou e tentou se arrastar pelo chão em desespero. Mas suas pernas vermelhas, dobradas de forma esquisita, impediam que ela se levantasse.
Foi quando o andarilho alcançou a coisa fraturada. Ela tentou se defender, mas foi impossível. Abrindo a sua boca nauseabunda, o andarilho mordeu, primeiramente o pescoço, fazendo com que os gritos do vermelho fossem repentinamente interrompidos, enquanto seus olhos começavam a mostrar uma visão aterroripetrificada; depois atacou o tórax da coisa, que já não respirava mais.
Foi uma lauta refeição. Ele se levantou e continuou sua caminhada lenta na semiescuridão que ia tomando conta da estrada com a chegada daquela ausência de luz que ele não entendia o que significava. Sua cara e os andrajos dos trajes que cobriam seu corpo estavam lambuzados pela cor vermelha, mas seu  estomago ainda rugia de fome. 

TRECHO III

Mais um dia amanheceu e anoiteceu. O andarilho continuava em seu passo lento, grunhindo de fome, mas sem ter qualquer sensação de cansaço. Ao contrário. Nada o impedia de continuar sua andança.
E ele continuava sempre, rumando mais ainda para o sul, através da estrada que continha cada vez mais daqueles objetos duros, chegando a um ponto onde não era mais possível que qualquer deles pudesse transitar. Estava ficando difícil até para o andarilho e seus companheiros continuarem andado entre os destroços, a ponto de alguns pequenos grupos irem se amontoando do lado dos objetos e ficarem farejando o ar para ver se encontravam restos de coisas vermelhas para devorarem.
Mas ele não era assim, tão facilmente dissuadido. Alguma coisa, talvez algum instinto ou resquício de alguma informação determinava a seu cérebro e seus membros que continuasse andando, como se ele tivesse que chegar em algum destino, mesmo que não entendesse porque. Ele somente sentia a necessidade premente de mais coisas vermelhas para degustar.
Entretanto, o andarilho também precisava continuar caminhando, seu corpo assim dizia. E, seguindo seu instinto ele obedecia. Por isso aqueles objetos duros e parados, que formavam uma barricada quase impenetrável, causaram uma frustração que beirava o desatino no viajante.
Ele urrou, chutou e esmurrou aqueles objetos, mas acabou percebendo que não iria conseguir tirar os mesmos do caminho. Alguns companheiros de andança olharam para ele impassíveis, se balançando e grunhindo baixinho. Pareciam ter desistido de prosseguir e acabaram desviando os olhos dele, entrando naquele estado de 'balança, mas não cai'. Ficaram observando a estrada a frente, atravancada.
O andarilho olhou a estrada e quase se deixou ficar como os demais. No entanto, ao olhar para o lado ele percebeu um leve balanço num tufo de algo que tinha na beira da estrada. Aquilo atraiu sua atenção esparsa. Ele resolveu investigar do que se tratava e caminhou lentamente até o lugar.
O vento soprava em direção a sua vanguarda, embora ele não percebesse esse fato. Nem seus companheiros. Mesmo assim, o leve ruído junto com o movimento do tufo continuava instigando alguma reação remota em seu cérebro praticamente sem funções.
Com alguma dificuldade ele conseguiu ultrapassar aquele tufo que espetava um pouco sua pele castigada, mesmo que a sensação não lhe trouxesse nenhum desconforto. Então ele viu: uma pequenina coisa avermelhada começou a correr, dando pequenos saltos aqui e ali. Não pensou duas vezes. O frenesi tomou conta dele no mesmo instante. A fome insaciável agora estava insuportável, pois ele já não comia há dois dias.
Para infelicidade daquela pequena coisa vermelha, mesmo sendo bastante rápida, o andarilho conseguiu alcançá-la. Ele enfiou suas garras em seu bucho e devorou seu corpo em poucos segundos. Depois lambeu o sangue nos dedos e se levantou. Ficou parado no lugar para ver se mais alguma coisa vermelha e de cheiro bom aparecia, mesmo que fosse tão pequena quanto aquela que ele acabara de comer.
Mas os minutos passaram e nada de novo surgiu. Então a estranha necessidade de voltar a caminhar tomou conta dele. Distraidamente ele olhou ao redor e percebeu que a sua frente não havia aqueles objetos duros e intransponíveis que haviam impedido sua andança, embora não soubesse dizer se isso tinha ocorrido há muito ou há pouco tempo atrás. O tempo estava relativizado em sua frágil memória.
Contudo, apesar de sua inteligência deficiente, ele percebeu que a trilha em que estava corria paralelamente a pista de rodagem. Ele recomeçou a andar nesta trilha porque poderia chegar aonde quer que precisasse sem ter que lutar com as massas imóveis-móveis, mas que não sairiam de seu caminho.
E assim ele continuou seu caminho, desta vez, totalmente desacompanhado, porque os outros andarilhos não haviam notado sua ausência, nem tinham inteligência para perceber a trilha que ele revelara ao entrar no mato para perseguir a pequena coisa vermelha.
Pelo menos por um tempo ele não precisaria disputar a parca comida com nenhum outro viajante.
Após caminhar por vários quilômetros, o andarilho chegou a um lugar repleto de estruturas que possuíam pelo menos dois buracos. Algo instintivo dizia a ele que era nessas estruturas que as coisas vermelhas grandes ficavam a maior parte do tempo. No entanto, neste local a maioria desses lugares estavam com os buracos escancarados e era possível ver que vários andarilhos estavam andado por ali. De alguma forma, ele sabia que  ali não encontraria como saciar sua fome e por isso continuou caminhando até se afastar do local.
Ele grunhia esquisitamente, como a murmurar a insatisfação de nunca chegar onde parecia que tinha que chegar e por causa da falta de comida. Ele estava mais irrequieto que seu irmãos, mais atento para qualquer barulho diferente e isso fazia com que ele acabasse entrando em alguma disputa desnecessária com algum andarilho ocasional.
O resultado? Foi mordido no rosto e perdeu uma orelha. O sangue coagulado escorreu brevemente pela sua face e parou tão repentinamente quanto havia começado. No entanto, seu adversário, aparentemente mais velho que ele, saiu sem um braço.
E ele continuou seu caminho, deixando o amputado a amargar o desentendimento de não ter mais uma garra para capturar sua comida. Este seria agora praticamente indefeso. Deixou de existir três horas depois que ele e o andarilho forte brigaram raivosos, quando uma pequena horda de viajantes o atacou para capturar de sua boca uma coisa pequena e vermelha, que ele tinha pego com muita dificuldade.
Já tendo esquecido deste pequeno entrevero, o andarilho acabou chegando as cercanias de uma estrutura cujo os costumeiros buracos de entrada e saída estava fortemente reforçados por vigas e pedaços de metal. Um pequeno bando de andarilhos rodeava as cercanias procurando uma forma de entrar no lugar. E ele sabia porque: sentiu o  perfume maravilhoso e apetitoso assim que chegou mais perto de uma das entradas.
Não sabia dizer como, mas achava que ali havia umas quatro ou cinco coisa vermelhas e apetitosas para servirem de banquete. Mas isso não seria suficiente para todos os viajantes que estavam esmurrando a estrutura, murros que não causavam qualquer impacto nos reforços tão bem foram realizados.
Ele começou a rodear a estrutura, observando os buracos que apareciam diante de seus olhos. Então parou um momento, se balançando e tentando ouvir acima dos urros dos demais esfomeados que estavam ali.
Nesse instante, ele ouviu um estrondo que veio do meio de uma das chapas que tapavam os buracos perto do chão. Do seu lado, um andarilho que tinha o corpo cheio de dentadas e pequenas perfurações no corpo, tombou no solo e ficou imóvel, depois que uma nova perfuração surgiu perto do topo de sua cabeça por onde escorreu um filete de sangue grosso e esverdeado. Ele cutucou o corpo caído, por impulso, e viu que nenhum movimento voltou a ser realizado pela criatura fulminada pelo estrondo. Não deu a mínima para o fato, além de que algo lhe dizia que devia evitar ser atingido por este barulho.
Então, o andarilho levantou casualmente a cabeça e uma percepção estranha lhe disse que tinha uma forma de entrar na estrutura por meio de um buraco, em cima da mesma, que refletia uma espécie de luminosidade descolorida aos seus olhos.
Ele grunhiu e olhou ao redor. Havia uma forma retangular encostada na parede. Caminhou lentamente até ela, evitando o local de onde o estrondo que derrubou o companheiro de viagem surgia. Quando chegou ao retângulo apoiou os braços nela e instintivamente subiu na mesma. Dali até a parte superior da estrutura foi muito fácil para ele galgar.
O andarilho se equilibrou com alguma dificuldade sobre o material escorregadio. Acabou deitado sobre o mesmo, mas mesmo com alguma dificuldade, conseguiu vencer o espaço entre a borda e o buraco refulgente. Bateu fracamente no vidro. Nada aconteceu e ele urrou frustrado. Tentou mais uma vez com mais força e desta vez ele rompeu a vidraça e arrastou o corpo pelo buraco, sem se importar com os pedaços de vidro que rasgaram sua pele seca, indo cair no chão no lado interior da estrutura.
Então ele sentiu o cheiro fabuloso da comida. O frenesi foi imediato. Não sabe como mas escorreu escada abaixo, aos tropeções e quedas indo parar numa sala onde três coisas vermelhas estavam ocupadas em produzir estrondos para o lado de fora.
Eles não ouviram o som do vidro do andar superior sendo quebrado e nem os passos do andarilho na escada. Ele urrou. Quando as coisas vermelhas olharam para ele ficaram paralisadas de horror.
Ele ouviu algo que não entendeu. Quando um dos vermelhos virou para o andarilho para se defender usando uma forma comprida com um buraco na ponta já era tarde. O andarilho foi tão rápido que quebrou o pescoço deste, jogou seu corpo contra os outros dois vermelhos, que não conseguiram se desviar a tempo para evitar o choque de um corpo de noventa quilos.
Quando perceberam, ele já estava sobre eles arrancando o braço de um e rasgando a garganta do outro. Finalmente ele podia se alimentar em paz.
Depois que acabou o andarilho galgou as escadas e saiu pelo mesmo lugar que entrou. O sangue fresco deixou os outros viajantes excitados, mas quando chegaram perto e não sentiram o cheiro apetitoso nem viram a cor vermelha circulando nele, viraram as costas e foram buscar outras estruturas que talvez abrigasse comida fresca ou os restos de alguma.
E o andarilho prosseguiu em sua viagem, pois uma região menos obscura de seu cérebro quase inativo dizia que ele estava muito próximo de chegar ao seu destino.

TRECHO IV – RIO GRANDE/RS

Ele percorreu os últimos quilômetros até a cidade do Rio Grande sem maiores dificuldades, exceto a falta de comida. Os viajantes que o precederam não deixaram nem coisa vermelhas pequenas para quem estivesse rumando na mesma direção.
A fome não gritava. Ela doía em cada pedaço atemporal de seu corpo. Mas, contradizendo a natureza, ele continuava andando, ouvindo, vendo e farejando o ar. Instintos aguçados dentro de um corpo lento e estropiado, que só adquiria plena funcionalidade diante da cor vermelha e do odor extasiante daquelas coisas frágeis que ele caçava para se alimentar.
As estruturas que encontrou quando entrou nos arredores do Rio Grande estavam todas vazias. Apenas alguns andarilhos se viam aqui e ali. A maioria com seus corpos quase destruídos. Outros se arrastando sobre os cotos de braços e pernas.
Ele continuou caminhando até o centro da cidade, onde o número de andarilhos era muito maior, embora a comida tenha praticamente findado. Muitos estavam naquele estado de transe: balançando sem sair do lugar, pois não havia nenhum barulho que os motivasse a investigar os locais adjacentes para ver se encontravam os petiscos prediletos.
Por fim, ele percebeu que certos bandos de andarilhos rumavam em direção a um ponto específico, como se algo os chamasse instintivamente para este local. Seguindo suas parcas conexões cerebrais foi atrás desses bandos.
Quando chegou ao local da aglomeração percebeu que os viajantes estavam amontoados, se balançando placidamente, embora ele ouvisse os urros ou grunhidos desesperados de alguns e visse que eles disputavam, a ponto de se despedaçarem, os pequenos espaços que se abriam em meio aquela multidão esfomeada. Tudo isso para tentarem chegar o mais próximo possível de um local que era impossível ver qual era.
Seguindo um instinto primitivo ele foi margeando aquela aglomeração de corpos andrajosos e disformes, que gritavam sua frustração por não conseguirem alcançar algo que viam a distância.
Depois de algum tempo de caminhada ele entrou num local com estruturas antigas e com tufos por todos os lados que eram balançados pelo vento. A alguns metros ele viu um reflexo em uma substância que parecia se mover. Caminhou até a borda dessa substância, mas não entrou nela, pois algo dizia que não era seguro.
Por fim ele encontrou um ponto de observação para seus olhos opacos, empoeirados e que viam somente em tons de cinza, a menos que algum coisa vermelha e apetitosa estivesse em seu foco de visão.  E ele viu. Haviam vários vermelhos que pareciam se movimentar em formas que flutuavam sobre aquela substância. E ele sentiu a frustração de não poder dar rédeas a sua inextinguível fome.
Ficou em pé, se balançando e observando o movimento dos vermelhos. Seu instinto dizia que em algum momento alguns deles teriam que vir até onde ele estava. Afinal eles talvez também sentissem fome como ele. Seu instinto mandou que ele ficasse ali então.
Apesar da fome ele pode descansar. O descanso que os seres da sua espécie conheciam: aquele que causa tanta dor e ansiedade, que desenvolve a paciência dos desesperados.
Finalmente Andres havia chegado ao seu destino. 

*A ideia inicial para o desenvolvimento deste conto me foi mencionada por Tiago Medeiros, assíduo frequentador da Fóx Locadora e profundo conhecedor do Mundo Zumbi.
Espero que gostes Tiago Medeiros.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O DEVORADOR DE LETRAS - PARTE II

*Foto obtida gratuitamente no Google Imagens



Enfim, o corpo de Graziela foi liberado pelo IML para ser sepultado. Era inacreditável que, desde os primeiros indícios de que o grupo estava sendo ameaçado até a morte da amiga e o enterro, somente cinco dias haviam transcorrido.

Augusto meditava nesta situação quando o telefone tocou e Ester o avisou que os atos fúnebres se dariam as 16h. Como fora sempre o desejo de Graziela, o corpo seria velado na funerária de Carlos, também componente do grupo, sem qualquer espécie de ritual religioso (ela não era uma mulher convertida, embora alegasse que tinha lá suas crenças), com o caixão lacrado. Após duas horas, tempo que os amigos teriam para conversar e contar piadas ao lado de seu esquife (ela não tinha familiares), Graziela deveria ser cremada sem a presença de qualquer pessoa.

Suas cinzas seriam imediatamente eliminadas num local desconhecido que ela escolhera e somente Carlos sabia e deveria guardar segredo sobre isso. Estava no contrato. Embora os amigos nutrissem uma curiosidade mórbida sobre o assunto, nunca ousaram perguntar a amiga que destino era esse. Graziela: sempre muito discreta. “E um tanto esquisita”, pensou Augusto. “Mas uma excelente amiga. Vou sentir saudades”, e segurou uma lágrima que queria teimar em cair.

Ele não era conhecido por sua capacidade de demonstrar emoções, embora todos o considerassem muito gentil e dotado de grande compaixão. Às vezes, atitudes falam mais alto que palavras.

Augusto arrumou-se tristemente. Sabia que a amiga ia fazer uma falta enorme, apesar dos outros a acharem excêntrica. Talvez ele fosse o que mais iria sentir a ausência. Mas nunca mencionou o assunto a ninguém, nem a ela. Certamente Grazi se ofenderia. Optara por ser solteira e não gostava de nada que se tratasse de sentimentalismos.

Ele suspirou. Enfim, caso encerrado...

Quando estava enfiando a chave na fechadura para abrir a porta e sair, ouviu um barulhinho de algo sendo empurrado por baixo da mesma. Olhou para o chão e viu um envelope, com o nome do destinatário em destaque. Abaixou-se rapidamente, enquanto pensava: “Ah! Não. De novo não!”.

Infelizmente, sim.

Ah! Sim, era a indesejada carta que eles estavam esperando desde a morte da amiga. Ele virou rapidamente o envelope. Estava lacrado. Abriu a porta aos trambolhões e olhou para os dois lados da rua. Mas não viu ninguém suspeito na área.

Enquanto os fiapos de seu cabelo na nuca voltavam ao lugar normal, ele meteu a carta no bolso interno do paletó, fechou a porta agitado, tremendo, olhando por cima dos ombros, com medo de ser apanhado de surpresa e dirigiu-se rapidamente para a funerária, que ficava perto de sua casa, de forma que ele não precisava pegar o carro para ir até o local. Decidiu esperar até o fim do velório para saber dos amigos se eles também haviam recebido mais uma daquelas cartas misteriosas.

Casualmente todos os nove membros do antigo clube chegam ao local ao mesmo tempo. Quando se viram perceberam imediatamente que todos haviam recebido o maldito envelope. Talvez isso tenha contribuído para a tamanha pontualidade do grupo, pois chegaram exatamente as 16h na funerária. Resolveram, embora tacitamente, ficar em silêncio sobre o tema. Aproveitaram para trocarem abraços e beijos ali mesmo na entrada, enquanto os pedestres passavam. Augusto sabia, assim como os demais, que era melhor tratarem deste caso após o velório.

Quando estavam em meio a essas expressões de afeto, como para adiar o momento de verem o caixão lacrado da falecida, Augusto percebeu pelo canto do olho uma figura estranha deixando o local sorrateiramente. Não conseguiu ver o rosto, pois a pessoa caminhava rapidamente, com ombros encolhidos, chapéu enfiado até a altura dos olhos, cabeça baixa. Vestia camisa e calça pretas. Parecia um homem de costas, contudo, Augusto não sabia precisar o que, mas algo no seu andar revelava que também poderia ser uma mulher.

-Hei! Pessoal: vocês viram aquele cara que saiu da funerária? Esquisito ele.

-Quem? – perguntaram dois ou três, enquanto todos se voltavam para Augusto.

-Não olhem para mim, olhem pra ele. Aquele lá. – e apontou o dedo em direção ao entroncamento das ruas Aquidaban e Luiz Loréa. Mas era tarde. Quando todos viraram os rostos naquela direção, a pessoa já tinha dobrado a esquina.

– Droga, vocês não viram! – exclamou irritado Augusto. – Mas afirmo que era alguém muito estranho.

-Tu tá vendo coisas. – disse Laura, uma moça na casa dos 25, estudante de Psicologia e segundo Rafael, a mulher mais bonita que ele já conhecera. – Além disso, podia ser outro cliente da funerária.

- Não, não imaginei não. E algo me diz que eu conhecia a pessoa. – defendeu-se Augusto. – Tenho certeza. Já vi em algum lugar. Mas não sei explicar quem é ou onde vi.

- Tu sempre foi meio sensível, Augusto. Essas cartas estão mexendo com tua imaginação, só isso. – Rafael disse. Como sempre estava debochando do melhor amigo de Graziela, que deu um passo adiante e se preparou para tirar satisfações daquele guri abusado.

- Gente, gente. Vamos nos acalmar. – disse Fernando apaziguador. – Estamos aqui por causa da Grazi. Não é hora de bobagens. E tu, Rafael: deixa o Augusto em paz, pelo menos hoje.

- Ok, papai. – Rafael falou ainda mais debochado. – E desculpa ai Augusto. Mas se a Grazi estivesse aqui ela riria também. Afinal não era isso que ela queria? Que seu enterro fosse uma piada? – Ele finalizou entre sarcástico e magoado. Todos baixaram os olhos.

Rafael era o mais novo do grupo, tinha 22 anos, e todos sabiam que ele tinha se livrado de um sério problema por causa da ajuda que Grazi, que fora sua professora alguns anos antes. Eles sabiam que ele a via como sua segunda mãe. No entanto, nunca souberam no que ela o havia ajudado.

- Vamos entrar, gente. – Alexandra, Alex para o grupo, falou. – Está na hora de acabar com isso de uma vez. Ela não gostaria que perdêssemos muito tempo chorando as pitangas. – sim ela falava esquisito, era muito franca, prática e corajosa, talvez fruto da sua profissão: era enfermeira. No entanto, nos últimos dias não vinha se sentindo assim muito audaz. Já tinha decidido, após o funeral iria tirar umas férias longe de Rio Grande.

Tragicamente, algo a impediria de concretizar seus planos.

O velório ocorreu como Graziela havia determinado. Após as duas horas determinadas, Carlos se preparou para recolher o caixão, e levar os restos mortais para o crematório.

Inexplicavelmente apenas os membros do grupo haviam comparecido ao velório, embora todos soubessem que a falecida era uma professora muito estimada nas comunidades em que lecionava, o que era confirmado pelas várias coroas de flores que estavam no local.

Augusto perguntou a Carlos se ele sabia algo sobre a ausência dos demais colegas de trabalho e alunos de Graziela. Recebeu como resposta: ela disse que somente eles, os membros do grupo, deveriam estar presentes na funerária. Todos na escola haviam sido orientados a não comparecerem, pois isso não beneficiaria ninguém.

- Mas porque ela planejou seu velório desta forma e com tanta antecedência, Carlos?

- Isso ela pediu para que eu explicasse para vocês depois que fosse cremada, o que ela pretendia que ocorresse quando morresse de morte natural. Infelizmente, seu homicídio apressou as coisas. Mas tudo a seu tempo, Augusto, tudo a seu tempo. Agora preciso ir. E vocês também. – Carlos deu-lhe as costas e foi tratar da última e estranha vontade de Graziela.

Todos se dirigiram para a saída. Rafael estava mais deprimido e sarcástico do que quando havia discutido com Augusto. Os demais estavam pesarosos, contudo parecia que alguns se sentiam estranhamente aliviados.

Embora não tivessem tratado diretamente do assunto, durante o velório, combinaram de se encontrar na casa de Fernando, às 20h, para falarem sobre seus “assuntos particulares”. Após as despedidas de praxe, cada um rumou para um canto da cidade. Precisavam ler suas cartas antes de se reverem para se livrarem do não poderia ser discutido entre eles e para acharem uma solução para o pequeno problema que estavam enfrentando.

As 19h30 quase todos os já estavam reunidos na casa de Fernando, pois as cartas foram mais estranhas do que se poderia esperar. Só faltava Carlos, que ainda não dera sinal de vida, talvez estivesse terminando de por em prática os esquisitos planos funerários de Graziela.

A conversa era entrecortada por momentos de silêncio e algumas breves conjecturas do que poderia estar ocorrendo. No entanto, ninguém se atrevia a começar a falar abertamente sobre o assunto. A demora de Carlos servia, ao mesmo tempo, de empecilho e de desculpa para que eles não atacassem diretamente o problema.

Por fim, o exótico relógio de carrilhão de Fernando tocou às 20h. E nada de Carlos chegar. Esperaram mais 20 minutos comendo uns petiscos que o dono da casa havia providenciado. Mas o amigo não apareceu. Estavam todos calados e temerosos. Augusto tentou o celular do agente funerário, mas só caía na caixa postal. O silêncio recaiu sobre todos, pois já estavam imaginando o que ocorrera. Ninguém se olhava, até que

TRRRRRRRRRRIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMM....

[continua]


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

NOVIDADE NA COLUNA "ESPAÇOS CULTURAIS"

Participação do colega Glênio Freitas Jr., que discorre sobre um novo e importante espaço cultural que foi entregue a comunidade riograndina neste mês. 
Vale a pena conferir e comentar.
Abraços
Adriane

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

NESTE DOMINGO VOU ASSISTIR BALLET

Na Coluna Teatro estou divulgando um espetáculo de Ballet que irá ocorrer neste domingo no Teatro Municipal do RIo Grande.
Leiam a coluna, descubram alguns fatos interessantes sobre o tema e sobre a peça. E comentem, pois isso também é importante.

Abraço 
Adriane

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

TENTÁCULOS

'Arriscar ou não arriscar? Eis a questão', essa foi hoje a frase quase filosófica que meus olhos olharam desconfiados e tentaram não responder.

Eu prefiro arriscar a meio, nem tanto, nem muito, gosto de meios-termos, mas, infelizmente, alguma coisa estranha em mim pede que eu me arrisque inteiramente. Mas não dou rédeas a esta pretensão. Decido primeiro.

Em consequência disso, surge uma nova questão: 'decisions, decisions', arrisco ou não, sabendo que vou pagar um preço. E eu prefiro não, mesmo pagando no final.

Eu preferia mesmo era aprender espanhol, francês, ou qualquer outra língua, menos inglês, embora faça falta as vezes. Na realidade, eu deveria era me contentar com o português, que já é difícil pra caramba, embora muito bonito e bom de estudar.

Mas isso tudo é uma faca de dois gumes, afinal.

Aqui em Big River só se chega ou se sai através de uma única estrada, embora haja algumas opções, como tentar fugir clandestinamente em um navio de cruzeiro que atraca no porto, se arriscar nos pequenos aviões que partem do velho e meio estropiado aeroporto riograndino (se é que aquilo pode ser chamado de aeroporto), ou decidir ficar e acabar totalmente empoeirado.

A Br é o recurso de chegada ou de partida, contudo é perigosa e nela perambulam monstros inimagináveis. Mesmo assim eu me arrisco nela algumas vezes por ano, para fugir ou para voltar. E para tentar captar numa foto rápida os andarilhos estranhos que nela desfilam.

Rio Grande é estranha: ninguém quer ficar, mas ninguém consegue partir totalmente. Ela gruda na tua pele, absorve teu cérebro e se entranha tanto em teu DNA que, por mais que queiras, tu podes até ir, mas acabas voltando volta e meia, seja pra uma visita ou para residir definitivamente Rio Grande é o fim e o começo do mundo. E, apesar de tudo, eu ainda prefiro ficar.

Arrisco minha alma nessa decisão. Talvez, portanto, eu já tenha resolvido a questão. Eu arrisquei tudo e perdi. Fiquei enredada nas redes desta cidade ruim e boa.

Não adianta. Já decidi: posso até viajar, mas sempre vou acabar como os grãos de areia que voam nesta cidade. Eles vão, mas voltam. A Br prende todos com  seus tentáculos.