Lívia não era mulher para mim. Eu sempre soube. Apenas preferi ignorar.
Lívia nunca seria mulher para mim, eu previ esse fato no momento em que a conheci, mas insisti e consegui o que queria.
Se me arrependo? Claro que sim. Como a gente sempre se arrepende quando escolhe errado, quando vive intensamente, quando vive de forma banal, quando tudo que parece certo se mostra errado e vice-versa.
Lívia.
Nome doce, pele clara, cabelos longos na medida certa, olhos castanhos, corpo do meu gosto, esse gosto meio estranho que tenho, com interesses levemente parecidos com os meus e tão diversos ao mesmo tempo, e alegre, alegria que domava minha quase melancolia. Mulher persona e personagem. Enfim, perfeita.
Repito: Lívia não era mulher para mim. Eu sabia, eu devia ter sumido. Mas fiquei porque não consegui segurar a vontade de conquistar uma mulher como aquela.
O fato é que Lívia nunca poderia ser mulher para mim, mas eu a desejei; transei com ela até minhas forças se esgotarem; deixei que ela me sugasse até o limite da minha energia psíquica; depois fui embora.
Voltei com o rabinho entre as pernas, ou porque eu tinha me viciado, ou eu a amava de verdade. No fim, depois de morrer de todas as formas, dei um chute naquela mulher, que era tão perfeita, mas com certeza não era para mim.
Por que penso desta forma?
Sempre acreditei que mulheres com nomes doces eram mais fáceis de lidar ou, ao menos, era possível conciliar certa força de personalidade com o que a doçura do nome prometia. Nunca me interessei por mulheres de nomes fortes, pois sempre me pareceram mais incontroláveis.
Dizem que os nomes expressam com fidelidade o que a pessoa é. Por exemplo, nunca gostei de nenhuma mulher de nome Adriane. Vermelho demais, conjunções europeias e bárbaras demais, coisas demais. Nessas mulheres eu só via interrogações e problemas. No entanto, isso é o que dizem as pessoas.
Já uma Lívia, uma Elisa, uma Cecília, uma Abgail, Isabelle, Rosa, Laura, Sofia, Mariana, por exemplo, são mulheres que podem ser fortes, contudo, me faziam sentir a leveza da água e da brisa quando ouvia seus nomes. Traziam-me certa paz, misturada com uma excitação pacienciosamente estimulante quando pensava em cortejá-las.
Mas a minha Lívia contrariou o que eu pensava ou o que diziam sobre esse tema. E eu, desde sempre, soube que ela era assim, diferente da doçura, da moderação, da excitante, mas paciente, sedução que é necessária empregar para conquistar mulheres de nome e alma doces.
Por quê?
Lívia era fogo. Era de todas as nações e de nenhuma, era coisas demais e além. Era mar calmo e mar grosso. Era tudo e nada, sem deixar de conter ou estar contida. Estranha essa matemática físico quântica, mas não tem outro jeito de descrever o que era essa mulher para mim.
Quando ela entrava num lugar sempre vinha acompanhada de algum blues, metal, soul, bossa nova, samba, rock, ou uma mistura de tudo isso e outros estilos. Seu pior estilo musical era o clássico. Era loucura pura quando ela chegava com suas sinfonias dissonantes e extremamente harmônicas.
Nesses dias ela me virava do avesso, me despia na frente de todo mundo, expunha meu eu como se fosse apenas uma diversão de circo. As pessoas sentiam meu amor, minha dor, meu ciúme, minha alegria, enfim tudo o que eu sentia por ela e por tudo que eu vivia quando estava com essa mulher.
É por isso que eu pouco escuto música hoje. Chega a me dar calafrios.
Como é então que eu estou suportando o blues que toca aqui nessa espelunca?
Por que é Janis, homem!
Permito-me ouvir Janis Joplin às vezes, apesar de ter que lidar com uma pequena síndrome de abstinência depois. Sabe como é, todo ser humano precisa de uma dose de adrenalina uma vez ou outra.
Por fim, Lívia quase acabou com meu fígado (me restaram os pulmões porque nunca gostei de fumar, nem suportei a fumaça ou o cheiro de mata-rato que essa porcaria deixa nas pessoas). A criatura gostava de beber. A princípio parecia coisa banal, mas quando introduzi os destilados em minha dieta, sob a influência dessa mulher embriagante, eu tive a confirmação definitiva de que ela não era para mim, entretanto fiquei. Filiei-me ao seu programa de embebedamento quase imediatamente, afinal eu não podia perder Lívia de jeito nenhum.
Foi num desses dias de embriagues que descobri que ela também curtia um barato. Até argumentei, mas ela riu e disse que não ia parar porque aquilo a ajudava a relaxar, a ser melhor, a sentir melhor. Na real, surtia efeito diverso. Ela fazia coisas bizarras.
Eu deixei este detalhe de lado, mas nesse esquema não entrei. Talvez seja isso, talvez o barato tenha queimado por demais os neurônios da Lívia.
Não, na realidade, não. Ela sabia muito bem o que acontecia e relaxava mesmo. Penso que ela curtia a fumaça porque aí mais de mil pessoas dentro dela entravam em frenesi. E Lívia amava isso, apesar dos danos colaterais.
Foi nessa época que eu me mandei, sabe? Por senso de autopreservação. Eu tinha virado um farrapo humano, embora parecesse bem. Nada de olheiras, nada de aumento ou perda de peso. Apenas a sensação de que nada mais havia dentro de mim.
As pessoas notavam meus olhos vazios, mas não diziam nada. Afinal, eu tinha virado a mascote predileta daquela mulher intensamente extravagante, contudo discreta quando lhe interessava. Elas achavam que seríamos inseparáveis e, se eu quisesse, seríamos mesmo.
Então, quando finalmente me desprendi dela passei a escolher mulheres de nomes fortes. Elas são transparentes; não te pregam peças; não fingem ser o que não são; não te deixam com mãos trêmulas porque não sabes o que vem pela frente.
Mulheres de nome forte são sempre tempestade ou bonança e tu vais estar sempre de prontidão.
Com estas não haverá surpresas; mudanças sutis, mas descontroladas, de humor; noites de bebedice sem conhecimento prévio; curtição de barato sem aviso, com o surgimento de coisas aparentemente humanas que se transformam em aberrações; o esvaziamento das emoções até a última gota, como se fosse a mordida de um vampiro que te suga insaciável e deliciosamente; ao contrário do que foi com Lívia, essa mulher de nome doce, mas amarga e viciante como o absinto.
Por que estou aqui, na espelunca que a gente frequentava de vez em quando, se eu fugi dela?
Sei lá. Eu precisava de uma dose. Como disse ela me adentrou no mundo da boemia e hoje deu uma pequena saudade disso tudo.
Só isso.
Então, por que pareço estar com os nervos a flor da pele?
Não, eu não estou com os nervos à flor da pele. Eu sou um sistema nervoso totalmente exposto depois da Lívia. Isso não teve conserto. Minhas mãos nunca mais deixaram de tremer depois que vivi esse ‘affair’ com essa mulher diabo que adorei um dia.
Por que eu estou falando de Lívia no passado?
Cara, isto está parecendo um interrogatório!
Falo dela no passado porque acho que ela deve ter morrido por aí. Por causa da vida que levava. Imagino até que ela morreu numa viela ao lado de alguma espelunca. Devem ter mordido seu pescoço e sugado com prazer seu sangue até o fim, como ela fez com tantas pessoas.
Se eu tenho visto Lívia?
Claro que não!
Não iria colocar minha sanidade em risco. Prefiro mulheres de nome forte agora, como, por exemplo, Valeska, igual à vodca que estou bebendo agora.
Vocês receberam uma chamada para o 190 do celular da Lívia? E ela pronunciou meu nome?
Cara, isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Deve ser alguma artimanha dessa infeliz de nome suave, mas vil como a mais cautelosa das serpentes.
Ela SEMPRE me colocou em situações embaraçosas.
Se eu sei que tem um corpo no beco ao lado desse inferninho?
Não, eu cheguei aqui faz pouco. Estou na primeira dose até. O meu amigo aqui do bar pode confirmar.
Então, como é que eu explico o corpo da Lívia no beco, com mordidas no pescoço e minha boca e mãos conspurcadas de sangue novo e quente?
Não sei. Isso em mim não deve ser sangue. Devo ter derramado tinta nas mãos. Acho que estava pintando quando sai de casa.
Se Lívia está morta não fui eu. Eu não a vejo há meses.
Como assim, o senhor vai me prender?
O senhor não pode fazer isso, não existem provas contra mim. Tudo é apenas uma coincidência. O senhor sabe com quem está falando? Não coloca essas algemas, senão vou te processar. Alguém aí chame meu advogado!
Então, a mulher de nome doce está morta. E daí? Ela mereceu.
Mereceu por tudo que me roubou. Essa mulher Lívia que nada tinha de suave, a não ser o nome, a boca, o corpo, o cabelo. Porque o coração, ah! esse era composto de todos os círculos do inferno.
É só olhar as marcas no meu corpo senhor.
Olha senhor, as marcas no meu corpo!
Por que a minha alma ela sugou na primeira vez em que a vi e eu soube que Lívia nunca seria a mulher certa para mim.