sábado, 27 de fevereiro de 2016

LÍVIA


Lívia não era mulher para mim. Eu sempre soube. Apenas preferi ignorar.

Lívia nunca seria mulher para mim, eu previ esse fato no momento em que a conheci, mas insisti e consegui o que queria. 

Se me arrependo? Claro que sim. Como a gente sempre se arrepende quando escolhe errado, quando vive intensamente, quando vive de forma banal, quando tudo que parece certo se mostra errado e vice-versa.

Lívia. 

Nome doce, pele clara, cabelos longos na medida certa, olhos castanhos, corpo do meu gosto, esse gosto meio estranho que tenho, com interesses levemente parecidos com os meus e tão diversos ao mesmo tempo, e alegre, alegria que domava minha quase melancolia. Mulher persona e personagem. Enfim, perfeita. 

Repito: Lívia não era mulher para mim. Eu sabia, eu devia ter sumido. Mas fiquei porque não consegui segurar a vontade de conquistar uma mulher como aquela.

O fato é que Lívia nunca poderia ser mulher para mim, mas eu a desejei; transei com ela até minhas forças se esgotarem; deixei que ela me sugasse até o limite da minha energia psíquica; depois fui embora.

Voltei com o rabinho entre as pernas, ou porque eu tinha me viciado, ou eu a amava de verdade. No fim, depois de morrer de todas as formas, dei um chute naquela mulher, que era tão perfeita, mas com certeza não era para mim. 

Por que penso desta forma?

Sempre acreditei que mulheres com nomes doces eram mais fáceis de lidar ou, ao menos, era possível conciliar certa força de personalidade com o que a doçura do nome prometia. Nunca me interessei por mulheres de nomes fortes, pois sempre me pareceram mais incontroláveis. 

Dizem que os nomes expressam com fidelidade o que a pessoa é. Por exemplo, nunca gostei de nenhuma mulher de nome Adriane. Vermelho demais, conjunções europeias e bárbaras demais, coisas demais. Nessas mulheres eu só via interrogações e problemas. No entanto, isso é o que dizem as pessoas. 

Já uma Lívia, uma Elisa, uma Cecília, uma Abgail, Isabelle, Rosa, Laura, Sofia, Mariana, por exemplo, são mulheres que podem ser fortes, contudo, me faziam sentir a leveza da água e da brisa quando ouvia seus nomes. Traziam-me certa paz, misturada com uma excitação pacienciosamente estimulante quando pensava em cortejá-las.

Mas a minha Lívia contrariou o que eu pensava ou o que diziam sobre esse tema. E eu, desde sempre, soube que ela era assim, diferente da doçura, da moderação, da excitante, mas paciente, sedução que é necessária empregar para conquistar mulheres de nome e alma doces.

Por  quê?

Lívia era fogo. Era de todas as nações e de nenhuma, era coisas demais e além. Era mar calmo e mar grosso. Era tudo e nada, sem deixar de conter ou estar contida. Estranha essa matemática físico quântica, mas não tem outro jeito de descrever o que era essa mulher para mim.

Quando ela entrava num lugar sempre vinha acompanhada de algum blues, metal, soul, bossa nova, samba, rock, ou uma mistura de tudo isso e outros estilos. Seu pior estilo musical era o clássico. Era loucura pura quando ela chegava com suas sinfonias dissonantes e extremamente harmônicas.

Nesses dias ela me virava do avesso, me despia na frente de todo mundo, expunha meu eu como se fosse apenas uma diversão de circo. As pessoas sentiam meu amor, minha dor, meu ciúme, minha alegria, enfim tudo o que eu sentia por ela e por tudo que eu vivia quando estava com essa mulher.

É por isso que eu pouco escuto música hoje. Chega a me dar calafrios.

Como é então que eu estou suportando o blues que toca aqui nessa espelunca?

Por que é Janis, homem!

Permito-me ouvir Janis Joplin às vezes, apesar de ter que lidar com uma pequena síndrome de abstinência depois. Sabe como é, todo ser humano precisa de uma dose de adrenalina uma vez ou outra.

Por fim, Lívia quase acabou com meu fígado (me restaram os pulmões porque nunca gostei de fumar, nem suportei a fumaça ou o cheiro de mata-rato que essa porcaria deixa nas pessoas). A criatura gostava de beber. A princípio parecia coisa banal, mas quando introduzi os destilados em minha dieta, sob a influência dessa mulher embriagante, eu tive a confirmação definitiva de que ela não era para mim, entretanto fiquei. Filiei-me ao seu programa de embebedamento quase imediatamente, afinal eu não podia perder Lívia de jeito nenhum. 

Foi num desses dias de embriagues que descobri que ela também curtia um barato. Até argumentei, mas ela riu e disse que não ia parar porque aquilo a ajudava a relaxar, a ser melhor, a sentir melhor. Na real, surtia efeito diverso. Ela fazia coisas bizarras.

Eu deixei este detalhe de lado, mas nesse esquema não entrei. Talvez seja isso, talvez o barato tenha queimado por demais os neurônios da Lívia. 

Não, na realidade, não. Ela sabia muito bem o que acontecia e relaxava mesmo. Penso que ela curtia a fumaça porque aí mais de mil pessoas dentro dela entravam em frenesi. E Lívia amava isso, apesar dos danos colaterais.

Foi nessa época que eu me mandei, sabe? Por senso de autopreservação. Eu tinha virado um farrapo humano, embora parecesse bem. Nada de olheiras, nada de aumento ou perda de peso. Apenas a sensação de que nada mais havia dentro de mim. 

As pessoas notavam meus olhos vazios, mas não diziam nada. Afinal, eu tinha virado a mascote predileta daquela mulher intensamente extravagante, contudo discreta quando lhe interessava. Elas achavam que seríamos inseparáveis e, se eu quisesse, seríamos mesmo.

Então, quando finalmente me desprendi dela passei a escolher mulheres de nomes fortes. Elas são transparentes; não te pregam peças; não fingem ser o que não são; não te deixam com mãos trêmulas porque não sabes o que vem pela frente. 

Mulheres de nome forte são sempre tempestade ou bonança e tu vais estar sempre de prontidão.

Com estas não haverá surpresas; mudanças sutis, mas descontroladas, de humor; noites de bebedice sem conhecimento prévio; curtição de barato sem aviso, com o surgimento de coisas aparentemente humanas que se transformam em aberrações; o esvaziamento das emoções até a última gota, como se fosse a mordida de um vampiro que te suga insaciável e deliciosamente; ao contrário do que foi com Lívia, essa mulher de nome doce, mas amarga e viciante como o absinto.

Por que estou aqui, na espelunca que a gente frequentava de vez em quando, se eu fugi dela?

Sei lá. Eu precisava de uma dose. Como disse ela me adentrou no mundo da boemia e hoje deu uma pequena saudade disso tudo. 

Só isso.

Então, por que pareço estar com os nervos a flor da pele?

Não, eu não estou com os nervos à flor da pele. Eu sou um sistema nervoso totalmente exposto depois da Lívia. Isso não teve conserto. Minhas mãos nunca mais deixaram de tremer depois que vivi esse ‘affair’ com essa mulher diabo que adorei um dia.

Por que eu estou falando de Lívia no passado?

Cara, isto está parecendo um interrogatório!

Falo dela no passado porque acho que ela deve ter morrido por aí. Por causa da vida que levava. Imagino até que ela morreu numa viela ao lado de alguma espelunca. Devem ter mordido seu pescoço e sugado com prazer seu sangue até o fim, como ela fez com tantas pessoas.

Se eu tenho visto Lívia? 

Claro que não!

Não iria colocar minha sanidade em risco. Prefiro mulheres de nome forte agora, como, por exemplo, Valeska, igual à vodca que estou bebendo agora.

Vocês receberam uma chamada para o 190 do celular da Lívia? E ela pronunciou meu nome?

Cara, isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Deve ser alguma artimanha dessa infeliz de nome suave, mas vil como a mais cautelosa das serpentes. 

Ela SEMPRE me colocou em situações embaraçosas.

Se eu sei que tem um corpo no beco ao lado desse inferninho?

Não, eu cheguei aqui faz pouco. Estou na primeira dose até. O meu amigo aqui do bar pode confirmar.

Então, como é que eu explico o corpo da Lívia no beco, com mordidas no pescoço e minha boca e mãos conspurcadas de sangue novo e quente?

Não sei. Isso em mim não deve ser sangue. Devo ter derramado tinta nas mãos. Acho que estava pintando quando sai de casa.

Se Lívia está morta não fui eu. Eu não a vejo há meses. 

Como assim, o senhor vai me prender?

O senhor não pode fazer isso, não existem provas contra mim. Tudo é apenas uma coincidência. O senhor sabe com quem está falando? Não coloca essas algemas, senão vou te processar. Alguém aí chame meu advogado!

Então, a mulher de nome doce está morta. E daí? Ela mereceu. 

Mereceu por tudo que me roubou. Essa mulher Lívia que nada tinha de suave, a não ser o nome, a boca, o corpo, o cabelo. Porque o coração, ah! esse era composto de todos os círculos do inferno. 

É só olhar as marcas no meu corpo senhor.

Olha senhor, as marcas no meu corpo!

Por que a minha alma ela sugou na primeira vez em que a vi e eu soube que Lívia nunca seria a mulher certa para mim.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

DESLEMBRANÇAS

Preferia a saudade.

Era melhor que esse vácuo que sentia toda vez que saia de casa ou voltava pra ela e se encontrava com a solidão cara a cara. 

Era estranho porque nada havia acontecido, nunca haviam trocado mais do que conversas e sorrisos. Algumas confidências talvez. Nunca tinham tido uma história, nem havia uma música que falasse a seus corações, que sempre haviam batido separados, embora parecessem, às vezes, tão próximos.

Então preferia que tivesse continuado a sentir apenas saudade do pouco que havia acontecido, e dos sonhos do que poderia ter sido.

Saudade era melhor que esse vazio seco, como se concreto tivesse sido derramado no interior do seu corpo e solidificado tudo, deixando sua mente pesada pela falta de sensações.

E aí o que acontecia? O vácuo era preenchido pelo que via, ouvia ou lia.

As músicas que ouvia, os livros que lia, os filmes que via, as melodias que dançava se tornavam as histórias, as músicas, os filmes, as danças que deveriam ser parte da história que poderiam estar vivendo. Era o vácuo sugando algo para alimentar uma escuridão infindável, uma ausência que nunca poderia ser suprida mesmo quando se encontravam.

Mas tudo piorava quando sonhava. Como ontem havia sonhado.

Duas pessoas, frente a frente, apenas falando, olhos nos olhos. E uma simples frase dita, que poderia ter um significado oculto, ou não:

“Nós temos tantas afinidades. Tantas... E a partir de hoje teremos mais afinidades ainda!”

Poderia ser uma premonição. Seria tão reconfortante. 

Toda a excitação da expectativa retornando. Toda a saudade preenchendo novamente o que não mais existia, ou nunca havia existido. Seria intensamente maravilhoso. Sentir a vida novamente fluindo pelas veias, pelo simples fato de que um pouco de esperança voltava a existir.

Olhos nos olhos, todos os significados passam a existir. Ou então o inconsciente os cria, porque um sonho nada mais é do que um desejo repercutindo na escuridão da mente. 

Contudo, não era nada disso. Era apenas o vácuo, simplesmente o maldito vácuo de algo inexistente, se autopreenchendo com coisas que nunca aconteceriam.

Por isso preferia a saudade. Essa é substancial. É palpável. Ainda possui um que de esperança. Saudade não te devora, apenas dói, mas te concede lembranças.

Mas o vácuo que sentia... 

Só produzia em si uma vontade ensandecida de se vingar. Já que seus sentimentos estavam concretados, a única maneira de quebrar esse estado era matar ou morrer.

Decidiu pela primeira opção.Iria vingar-se até extinguir a vida de quem lhe esnobava.

Sua felicidade seria tão evidente que sufocaria o vácuo, a criatura que amava e o universo, num poço de inveja e incerteza sobre os motivos que causaram tal êxtase em si.

Depois, depois seguiria sua vida. Esvaziada de toda essa paixão sangrenta.

Quem sabe, então, pudesse recomeçar outra história, ou voltar a criar outro romance, para preencher o espaço que seu coração redivivo precisaria para continuar batendo.

domingo, 15 de novembro de 2015

CRÔNICAS CURTAS

SOBRE ATOS INSANOS

Mais um ato ‘insano’ num mundo ‘psicopata’.

E não me digam que a culpa é dos refugiados, dos imigrantes, ou de outras culturas, ou diferentes etnias. Todos somos passageiros neste mundo. Todos somos da mesma espécie. 

A maldade não possui cor, etnia, cultura, crença ou espécie. Ela não discrimina nada nem ninguém, apenas fere sem nenhuma explicação ou justificativa.

SOBRE TOLERÂNCIA

A única coisa que eu não tolero é a intolerância.

Posso não gostar de ações, de atitudes e, até, de uma pessoa ou outra, mas respeito é bom e convém a todos. 

Não me calarei diante da hipocrisia e intolerância de pessoas que parecem ser boas, mas discriminam seus semelhantes apenas porque estes não fazem o que aqueles querem.

SOBRE O SILÊNCIO

Eu ando silenciosa, sim.

O silêncio é a melhor arma de defesa porque é a que mais irrita os perversos.

Então, prefiro ficar em silêncio por mais um tempo. A perversidade não consegue vencer esta muralha porque os argumentos silenciosos, na maioria das vezes, são mais pesados do que palavras soltas ao vento. 

Por isso, meu silêncio pesa, porque ele e meus atos falam por mim muito mais que minhas palavras bonitas ou feias.

SOBRE A RAIVA

Eu também perco o controle. 

Até eu mostro minha raiva. Isso me entristece. Mas sou humana. Seria pior se eu não mostrasse nenhuma emoção, nem boa, nem má. 

Talvez isso fosse a prova derradeira de que eu seria mais uma ‘insana’ num mundo ‘psicopata’.

SOBRE PAIXÕES IMPOSSÍVEIS

Uma paixão impossível dói demais.

Eu gostaria de não senti-la. Eu até arrancaria meu coração se ela deixasse de existir. Assim, eu não sofreria nem por mim, nem por ela. 

Mas também não viveria... 

Acho que prefiro continuar sofrendo do que me desapaixonar pela vida.

SOBRE ‘DESABAFOS’ NAS REDES SOCIAIS

De vez em quando até eu grito na rede virtual a irritação que alguns me causam.

No entanto, eu prefiro selecionar quem pode postar no meu mural, excluir pessoas ou comentários ou simplesmente ignorar.

Não debato sobre palavras com pessoas que podem apenas ter uma opinião diferente da minha. Não quero contribuir que ofensores e desocupados, que só querem chamar a atenção para si mesmas, seja por narcisismo, seja por terem pouca autoestima, maculem minha imagem pessoal ou virtual.

Eu prefiro resguardar a minha vida privada e não servir de estimulante ao ‘voyeurs’ de plantão.

Como diz o velho ditado: “roupa suja se lava em casa”, ou na escola, ou na academia, ou no trabalho. Porque quem gosta de fofoca são as revistas de mexerico, os tabloides e afins.

Eu não. 

Eu prefiro a franqueza direta, a resposta dada pessoalmente, em vez de usar a máscara da virtualidade para resolver problemas interpessoais. 

Até quem não gosta da gente, ou vice-versa, merece o respeito de ouvir cara a cara nossas verdades e opiniões.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MAIS UMA VEZ 'ESTRANHAMENTO': POR LEONARDO DE ANDRADE

Caros, amigos, leitores e seguidores:

Meu livro 'Estranhamento' continua despertando atenção.
Desta vez, do colega e escritor Leonardo de Andrade, que dedicou sua primeira análise literária do blog Poltrona Nerd a meu pequeno 'filho'.
Convido vocês a lerem a resenha e conhecerem esse blog tão interessante para quem curte a cultura nerd.

Muito obrigada, Leo! Ficou ótimo!

http://poltronanerd.com.br/livros-e-quadrinhos/review-estranhamento-da-autora-adriane-dias-bueno-22469

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O AROMA DA NOITE

A noite suspira, com seu perfume de espera, com sua cor de conformismo que se apagará apenas quando amanhecer.

Somente os notívagos entendem os aromas, as melodias e os paladares da noite. No entanto, nem eles sabem o que é varar noites e dias a meditar naquilo que se vê, mas para o qual não se encontra explicação.

Como se faz para descrever de maneira compreensível isso? Essa coisa louca, esse ar de tragédia que toma conta do ambiente, vez ou outra, e que dá um nó na garganta de quem a pressente?

E mesmo assim, mesmo diante do perigo, não é possível descrevê-lo, não é possível provar sua existência; nem seu gosto, nem sua cor e muito menos apontar sua causa.

Como se convence alguém de uma maldade não ocorrida ainda; de que, mesmo com todo o cuidado que se tomou, o inimigo já está a sua porta, já adentrou em sua casa e se instalou no cômodo mais importante, com seu ar de inocência induvidosa?

Mas eu o vejo, eu o vejo pela janela deste cômodo. Sinto sua malícia, o odor adocicado que exala de sua boca por sentir o gosto antecipado do sangue que irá derramar.

Eu vejo seus olhos oblíquos percorrendo o ambiente do qual se adonou e onde não há mais aquela luminosidade que tanto conforto e alegria trazia para quem ali vive.

Não há como expulsá-lo. 

Não há meio científico ou de outra espécie que possa, nesse instante, mandá-lo embora, ou para o lugar em que merece estar confinado; ou que consiga acabar com sua influência e exterminar os rastros de suas atrocidades, tão visíveis para mim e tão ocultos para os outros.

Será ingenuidade ter uma mísera esperança de que, quando o dia raiar, todos esses fatos e sensações surgirão, com sua verdade dura, contudo, purificante, diante dos teus olhos e que decidirás exorcizar essa presença malévola?

Será possível crer que o pesadelo terminará no exato momento em que deve terminar e que nada, nenhuma dor resultará dessa visita tenebrosa?

Não, creio que não.

Na realidade, talvez eu deva partir desse castelo antes que o dia raie e eu veja que tu e todos que o habitam jazem mortos, porque não quiseram decifrar esse mistério.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A VISITANTE

Hoje acho que eu vou receber uma visita, minha filha. Por isso, vou esconder todas as fotos. Sabe, eu tenho medo. Já me roubaram algumas, outras estragaram. Então, tive que começar a tomar precauções.

Eu não entendo porque as pessoas fazem essas maldades, sabe, minha filha, pegar coisas que não são suas, ou destruir, principalmente quando se trata de uma coisa que parece uma bobagem, mas que pra quem tem ou guarda é muito importante.

Fotos são assim, menina, acredita na minha experiência. Fotos são importantes porque nos lembram das coisas que a gente viveu. E servem pra refrescar a memória quando já estamos perdendo ela, como ta acontecendo comigo.

É por isso que, às vezes, eu pego meus álbuns e fico olhando os retratos que têm neles. Me lembram da minha mãe, dos meus tios, dos meus amigos, do meu pai... não do meu pai, não, porque a maioria das fotos dele já foi roubada ou estragada por uma criança daninha, filha de uma vizinha, que, de vez em quando, vem aqui e faz uma bagunça terrível, inclusive mexe nos meus retratos e estraga os que pega.

Eu já conversei com a mãe dela, mas não adiantou nada, nada mesmo. A mulher não acredita que sua criança (tão inocente, parece um anjo, com seus olhos verdes, seu cabelo escuro, sua pele branca) possa fazer uma daniesa dessas.

Mas ela faz, minha filha, ela faz.

Eu posso estar velha, mas caduca, ainda não. Por isso, eu sei que ela faz isso.

Mas como eu tava falando: eu fico olhando as fotografias da parentada, que já morreu, ou ainda vive, ou a pouco nasceu, e me dá uma dorzinha no peito, misturada com alegria. É tanta gente que eu fico tentando imaginar como a família cresceu tanto e eu nem percebi. 

Logo eu, que sempre fui muito atenta pra esses registros familiares.

E ajuda com a solidão sabe? Dá pra gente ver que não foi sempre assim sozinha e que as pessoas só não aparecem mais seguidamente ou porque já morreram ou porque não têm tempo mesmo.

Somente os velhos têm tempo hoje em dia. E olhe lá, porque muitos estão bem ativos. 

Eu não, porque... bom, eu não sei bem o porquê, só sei que é difícil pra mim sair dessa casa que dizem que é minhas, mas sinto que não. 

Às vezes eu estranho essa casa, tão cheia de móveis e tão vazia de lembranças. Eu não me recordo muito das coisas que vivi aqui, menina. E quando quero lembrar me dá um aperto na cabeça como se me dissessem que eu não deveria fazer isso. 

Mas não é só isso que a gente tem no final da vida? Lembranças boas ou más?

Não sei, mas penso que, mesmo quando é ruim, melhorar é lembrar do que ficar em dúvida. Depois mudo de ideia. Tenho mudado muito de ideia ultimamente. Isso me deixa constrangida, mas só conto isso pra ti, porque tu é uma menininha muito querida e bonitinha, sempre vem me visitar, com esse teu sorriso bonito, teus olhos verdes, teus cabelos escuros e tua pele clara.

Mas as fotos, claro, as fotos provam que eu sempre morei aqui. Mas quando chego nesses retratos eu pulo. Não gosto do que sinto quando vejo essas fotografias, porque a casa continua a mesma, mas as sombras nos cantos me assustam muito. Parece que tem alguma coisa escondida neles que vai saltar sobre mim e me sufocar até eu morrer sem poder pedir ajuda.

Eu não tenho medo da casa, sabe. Tenho medo é das fotos dos seus cômodos e dos cantos escuros que aparecem nelas. Quando está tudo iluminado e não tem nenhuma foto da casa por perto, fico tranquila. Chego a ronronar como um gatinho satisfeito.

Mas ai surge a filha da vizinha, tira todas as fotos do álbum e me deixa com raiva, essa menina esquisita de pele clara, cabelos negros e olhos verdes. Ela me mostra as fotos e fica rindo porque não consigo me mexer. 

Então ela guarda essas fotografias tristes e começa a estragar as bonitas por pura maldade. Eu não consigo fazer nada pra ela parar, fico só dizendo: “Não faz isso, minha filha, não faz isso minha filha”.

É quando eu olho para o espelho.

Esse mesmo de onde tu me miras e que me reflete enquanto escovo, antes de dormir, meus cabelos escuros quase brancos, minha pele clara enrugada, meus olhos verdes baços. Esse espelho onde te vejo, com tua pele branquinha, teus olhinhos verdes luminosos de esperança e teu cabelinho liso e escuro brilhante, tão pequeninha e inocente.

Acho que essa noite a filha da vizinha não vem, menininha. A visita vai ficar pra outro dia. Deve ser porque tu ta aí no espelho. Então, nenhuma foto será estragada, nenhum canto escuro saltará sobre mim. 

Acho que dormirei em paz essa noite, minha filha. Graças a Deus.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O BAILE

O dia está chovendo hoje.

Ela escuta músicas suaves para acalmar sua mente rodopiante. Sentada no tapete de sua pequena sala sorve o mate que lembra todos os chamamés que dançou, mas não a saciaram.

Ontem, só faltou a valsa para derreter totalmente o aço que estava comprimindo seu coração há um século. Por algumas horas conseguiu esquecer quem era e viver apenas a fração de cada um dos compassos que marcava com seus pés, em geral gastos pelas andanças rotineiras de sua vida.

Notas musicais são as chaves das celas públicas que te prendem, pelo menos de vez em quando.

No meio disso tudo, no entanto, vez por outra saltava aguda a sensação da ausência de algo que não pode tocar. Mais uma vez teve ao menos o consolo de sua imaginação fértil, que supriu a carência sentida. 

Dançou com a imagem que desenhou nas paredes.
Sim, dançou para essa ausência. Fechou os olhos e acreditou que todas as figuras, as trocas de mãos, as inversões de passos, os cruzamentos de pernas eram realizadas, com perfeição, não apenas para sua alegria, mas para satisfazer a presença ausente que a observava das sombras.

Dançou até sozinha, como se dançasse com quem queria.

Voltou para casa exausta. Pernas doloridas, braços dormentes e com o desejo de saber o que pensaria de tudo aquela sombra que somente ela conseguia pressentir.

De fato, hoje está chovendo o dia. O mate esfria na cuia e, estranhamente, é uma música country que ressoa no ambiente, lembrando-a de que, como de hábito, alguns de seus sonhos talvez nunca possam ser concretizados.

Enquanto isso, esse sentimento ausente, que ela não sabe bem dizer o que é, sussurra em seu ouvido:

"Relaxa, falta pouco para voltarmos a bailar".