sábado, 26 de outubro de 2013

O ESPELHO*

A vida é assustadoramente estranha. Muitas vezes, ela nos traz boas surpresas. Mas, em alguns casos, mais comuns do que pode parecer, a vida bate à nossa porta e nos mostra a face horripilante daquelas coisas que não ousamos imaginar.

E foi assim que surgiu, no portão da casa em que eu morava, nas proximidades da Br 392, aquilo que eu mais temia, principalmente por causa das histórias que meus parentes me contavam sobre o antigo casario que eu herdei de meus pais.

Uma sombra projetou-se sobre mim e jogou-me para o interior da residência. Eu caí sobre o piso de madeira do hall de entrada. Petrificada ante a escuridão que tomou conta do recinto eu não ousei olhar para cima e encarar a face do ser escabroso, com bafo repleto de ignomínia, que me mantinha pregada ao chão.

Era uma sombra e, no entanto, pesava tanto sobre mim que não permitia que eu me mexesse. Comprimia meu corpo contra o assoalho fortemente, me deixando desatinada de medo e expectativa.

Eu tremia; eu deixei lágrimas de pavor escorrerem dos meus olhos, deslizarem pelo meu rosto coberto pela escuridão densa produzida por aquela coisa e pelo cheiro nauseabundo que emanava da sua boca que, eu pressentia, não tinha fim, nem começo. 

Por isso, por covardia, eu preferi ficar mirando o espelho que recobria uma parte da parede do hall, indo do teto ao chão, mas que, tomado pelo negrume da sombra, nada conseguia refletir.

Então senti uma língua percorrer demoradamente minha cara, como a querer saber que gosto eu tinha, se eu era ou não o petisco que iria saciar sua fome. Mesmo diante disto, eu não gritei. Senti a saliva daquilo grudando na minha pele. Talvez nunca mais iria sair dela, mesmo que eu a lavasse repetidas vezes.

A escuridão arfou, fungou, grunhiu e me provou mais uma vez. Eu senti sua boca imensa abrir e fechar, abrir mais uma vez e, quando acreditei que ela me devoraria finalmente, a coisa simplesmente sumiu.

Foi embora, permitindo que o sol brilhasse dentro da minha casa outra uma vez, e livrando meu corpo do peso que me subjugava, embora eu tivesse a sensação de que nada o havia prendido durante aqueles breves, mas terrivelmente eternos, momentos. 

A sombra sumiu na claridade do dia, levando consigo sua boca profunda e fedorenta.

Apenas o espelho restou como testemunha do transe que sofri, pois nele ficou gravada a forma esfumaçada daquele ser que não consegui identificar, embora sua lembrança, até hoje, arrepie os pelos da minha nuca. 

Contudo, apesar do terror que essa imagem me causa, eu não consigo me livrar do espelho, dessa estranha prova do que vivi naquele dia.

É por isso que eu, desde então, costumo dizer a quem me pergunta sobre o espelho:

"Não desce as escadas se não tiveres coragem para encarar o que irás encontrar no subterrâneo".

*Publicado na Antologia "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo", Edição 2012, CBJE. O conto sofreu algumas alterações em relação ao manuscrito original.


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