domingo, 23 de dezembro de 2012

FILHA DE SAM


“Afirmo: com certeza, autotortura não faz nada bem, mesmo a psicológica. Ah! Como doí essa coisa que bate dentro do peito. Uma filha de Sam não deveria sentir, mas...”

Mesmo diante desta simples conclusão e sendo tida como nervosinha preferiu optar por uma profissão, um estilo de vida e uma forma de diversão que prejudicava ainda mais a análise de sua personalidade. Em função disso, não era apenas impaciente. Passou a ser intransigente, opiniática, cheia de manias com as quais outros não podiam conviver.

Sua formação ocorreu naquela década passada ao largo e que agora querem recuperar: a de 80, a mais pop e a mais absolutista que poderia ter existido, seja neste país, seja em qualquer outro. Tornou-se letrada, aparentemente inteligente, envolvida em várias vicissitudes da vida moderna, sem se envolver realmente com nada.

Aparentava sentir, mas será? Sempre se percebera como a mais evidente filha de Sam, muito embora os outros não notassem. Havia um quê de psicótico em suas ações e reações, ela sabia. E se questionava como ninguém notava.

Sofrera ‘bullyng’, o que na sua época já existia em sua cidade, escola e até mesmo entre familiares, assim como no resto do mundo, embora as pessoas não dessem esse nome estrambólico ás perseguições que ocorriam nas instituições mencionadas. Além disso, dentro do colégio ninguém se importava com o que os estudantes faziam uns com ou outros.

Então, tudo era entendido como um fato comum entre aqueles das mesmas faixas etárias. “Brigas de crianças”; “birra apenas”; “criancices”; apesar das injustiças que ocorriam, dos maus tratos, dos sentimentos feridos e das escoriações que apareciam.

“Não foi nada, mãe. Caí no pátio durante o recreio”.

“Esbarrei num colega na educação física”.

“Bati a cara na cercada horta quando estava de correria”.

“Vê se toma cuidado, guria. Sempre desajeitada”, repreendia a mãe.

“Tu mais parece um guri que uma menina”, dizia o pai, meio grogue.

E mesmo com a vontade de baixar o sarrafo em todo o mundo, nada fazia. Remoía sozinhas as escoriações e sentimentos feridos. Nunca havia explodido uma bomba na escola, nunca metralhara nenhum colega, nunca socara a cara de ninguém menor do que ela. Mas sabia que, por dentro, num lugar que ninguém vê nem sente, a semente se contraía. Só não entendia porque esta não vingava.

É bem verdade que escrevera um diário codificado, com alguns desenhos um tanto estranhos, mas quando as ruminações chegaram naquele quarto escuro resolveu que aquilo não adiantaria nada. Aliás, era até perigoso. Então, deixou de escrever e começou a viver de sonhos e pesadelos.

O diário foi escondido por dois anos, o que poderia ter algum significado esquisito para ela. Ou não.

Quando o leu pela segunda vez percebeu que tudo ali era muito suspeito e destruiu o caderno, sentindo um prazer meio mórbido em ver as chamas devorando as palavras uma a uma, como um canibal degustaria suas vítimas, enquanto seus olhos traduziam inversamente os códigos, que, mesmo assim, acabavam dizendo a mesma coisa e nada.

“Uma filha de Sam deveria ser mais ativa”, pensou nessa ocasião solene. Entretanto, nunca ultrapassou o limite da divagação. Continuava a olhar furtivamente ao redor, planejando de forma incansável a vingança, sem nunca pô-la em prática. E seus colegas se iam rindo por terem acabado com seu corpo e mente. Mas quando se voltavam ela estava olhando e, sem saberem o porquê, acabavam acelerando o passo. Aqueles olhos infinitamente mansos arrepiavam suas nucas.

Até que ela descobriu um membro muito pequeno, mas eficaz. Ah! Se tivesse percebido antes tudo teria sido diferente, talvez menos duro, embora intragável. Sua língua passou a ser o detonador de muito desconforto para aqueles que a incomodavam. E por isso passou a vagar pela escola sozinha, a viver na biblioteca, a falar com professores sem ter que se preocupar com as represálias e apelidos de puxa saco.

E assim ela foi vivendo a década da desgraça juvenil, que trouxe outra onde a cultura se esvaiu pelo ralo, até chegar a que corre hoje, em que muitos alegam que se está vivendo uma grave crise social e se reconheceu a ‘existência’ do tal ‘bullyng’.

Parece que somente quando algo chama atenção ou é nomificado em outro país é que se começa a ver que o problema também ocorre aqui ou acolá. É como moda ‘retrô’: vai e volta e as pessoas sempre dizem que estão criando ou descobrindo algo novo, sem, contudo, realmente estarem fazendo isso.

A década de 80 se resume a este ‘x’. E a atual só aprendeu a copiar aquela, com grande prejuízo para a arte de se saber o que deve ser feito.

Assim, o terrorismo emocional e escolar virou rotina. A moda agora é homem chamar mulher de cachorra, mulher aceitar e pedir para ser tratada como cachorra, o que, no final não se sabe o que significa, porque as cadelas até são bem tratadas pelos seus companheiros, e deificar pessoas que matam tudo em busca de dinheiro, prazer, adrenalina, mais prazer, mais adrenalina, mais dinheiro, até tudo virar rotina e ninguém sentir mais nada.

Ela meditava nessas circunvoluções algumas vezes. Mas ela era uma filha de Sam e sabia que isto ocorreria com pelo menos vinte anos de antecedência e não se preocupava muito com o resultado. Os decadentes assintomáticos sempre preveem a decadência antes mesmo de ser prenunciada.

Assim, seu pai morreu miseravelmente, mas seu legado virou a melhor herança que ele poderia deixar. Nem ele percebeu isso antes de sua fatídica e esperada morte.

Contudo, a psicose de sua filha continuaria parcamente dominada. Ela era de uma espécie diferente de filha de Sam, uma espécie transitória, que na ocasião que surgiu não sabia bem o que queria, desejava ser ou fazer. A influência paterna foi forte, mas, como pode ocorrer na primeira geração, não a ponto de desencadear o surto fatal para si ou para outros.

Diz o determinismo, tese que ela achava uma grande bobagem, mesmo sendo uma das teorias em evolução constante, sem nunca constatar nada, e de ser amplamente divulgada pelo país de origem de seu pai, que o gene ruim, embora presente, pula uma geração, e acomete fortemente a segunda e terceira, agravando-se com o passar dos séculos ou sofrendo uma recidiva. Afinal, a doutrina do mais forte ainda servia para justificar muita mentira tosca, vendida a preço de banana, e aceita pela maior parte da população letrada ou não para desculpar suas atitudes esquizoides.

Entretanto, ela sabia que esse cientificismo todo não era verdadeiro. Sabia que, se uma semente era ruim, os brotos todos seriam contaminados.

Como ela já confirmara, o fato era que os rebentos mais antigos apenas pareciam conter mais facilmente sua malignidade. Haviam decidido, de sã consciência, deixar que seus descendentes, com a mais exaltada alegria, mostrassem perante os expectadores, mais ou menos inocentes, a pior parte. 

Um comentário:

  1. Wow!!!!!
    Que texto!!!
    Muito bom, amiga!!!
    Me enxerguei em alguns trechos deste texto!!!
    Parabéns e obrigado por compartilhar!!!

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